vozes, gritos, palavra.

ARIANE

Casámos porque estávamos famintos. Famintos de amor, se quiser, que o amor é filho da fome. Já para os gregos, Eros era filho de Pénia, da Pobreza.
O amor é fome de outra vida, desejo de transitar. Quando dois amantes se abraçam e beijam, entredevoram-se, morrem um no outro, de algum modo, e transitam para um novo ser. A vida não pode ficar, em nós, a repetir-se, que repetir é estar parado, é ocupar o mesmo lugar. O amor compensa a morte, dá o que ela tira. O homem perpetua-se, amando e alimentando-se: Comei! Este é o meu corpo! O corpo é fruto assimilado; e o fruto é húmus, água e sol. E o fruto assimilado se transformará em espírito, alcançando assim a Divindade.

JOÃO DE DEUS, off

E dizia-se ainda mais. Dizia-se, por exemplo: O que é que cu tem a ver com as calças? A minha mulher é que sabe tudo mas, para dizer a verdade, não há grande coisa para saber. A primeira vez que vi a Ariane, olhei-a nos olhos, de alto a baixo, ai minha rica bacia, calei-me muito bem caladinho, e disse de mim para mim: É esta!
Um homem, se for homem, aguenta a penada: Tem-te, não caias, Joãozinho!
Não sou homem de muitas falas. Na primeira aberta, só lhe disse o que o professor Salazar terá dito à governanta: “Mariazinha, não estamos aqui para nos divertirmos”.

JORNALISTA

E podemos saber o que à semelhança de tantos dos nossos compatriotas espalhados pelos quatro cantos do mundo vos leva a emigrar?

JOÃO DE DEUS

Pode. Estamos fartos desta caca.

JORNALISTA

Mas não têm condições de trabalho no nosso país?

JOÃO DE DEUS

Nem de trabalho, nem de coisíssima nenhuma, embora não me desagrade ver trabalhar.

JORNALISTA

Mas nunca exerceu nenhuma actividade profissional?

JOÃO DE DEUS

Ponha artista saltimbanco ou não ponha nada. É-me igual, mas quando era miúdo, passou-me pela cabeça ser marinheiro. Queria andar no mar alto, com um papagaio empoleirado no ombro. Ver outras terras, outras gentes.

ARIANE

Não sejas modesto, meu amor. Agora anda com a mania que foi marinheiro de água-doce.

JOÃO DE DEUS

Je te salue, vieil Océan! Il était un petit navire, qui n’avait jamais navigué…

JORNALISTA

E como pensam sobreviver no Pólo Norte? A comer carne de burro?

JOÃO DE DEUS

A fazer buraquinhos no gelo com a nossa varinha mágica. A minha mulher e eu não gostamos de carne de burro. Temos umas boquinhas muito esquisitas e não somos democratas.

JORNALISTA

E como pensam resistir à inclemência das neves eternas?
(…)

JOÃO DE DEUS

Quem conseguiu sobreviver nesta piolheira, também consegue sobreviver no Pólo Norte. Não se preocupe connosco. Se nos chatearmos, partimos para a lua…
(…)

João de Deus volta costas ao jornalista e acaricia a cabeça do burro.

JOÃO DE DEUS

Anda Luciano, que já enganámos mais um!

João de Deus ajuda Ariane a montar o burro. O jornalista estende, em vão, a mão a João de Deus, tira o gorro, limpa o suor da testa e sai de campo. João de Deus, descalço, conduz o burro pela arreata. Estuga o passo, vai veloz, mas não segura: Ariane estatela-se. Pequeno bate-cu sem consequências de maior. Desistirão os destemidos emigrantes, tão polares e merdiáticos?

João César Monteiro, in Les Bassin de John Wayne seguido de As Bodas De Deus, & etc, 1997