vozes, gritos, palavra.

“O vento gritava na viela. Ouvia-se o seu sopro possante que moía as estruturas podres dos casebres. O velho Kawa sentia o frio imobilizar-se nele – uma dor sem princípio nem fim, como a estagnação de uma lâmina de faca mergulhada na carne viva. O velho Kawa levantou-se, ficou um momento de pé no vão da porta, como se quisesse expulsar este estranho frio do seu corpo. Voltou a acocorar-se e estendeu as mãos para as chamas moribundas do incensador.
Pouco depois, pareceu-lhe que alguém se mexia no pátio. Voltou-se para o canto esquerdo e distinguiu a silhueta delicada, insignificante de Chéhata, o marceneiro. O homem parecia absorvido numa tarefa que exigia uma eternidade. Os seus olhos ternos não se mexiam nas órbitas; mantinha-os continuamente cravados no trabalho. Ibrahim Chéhata, o marceneiro, um ser taciturno e insondável, ocupava, na companhia da sua mulher e dos seus quatro filhos, um infame reduto nas profundezas da casa. Esta família famélica arrastava uma miséria verdadeiramente medieval. Todos morriam de fraqueza. (...)
Demasiado pobre para arrendar uma loja, o marceneiro instalara-se num canto do pátio. Viam-no sempre a entregar-se a um trabalho minucioso e quase clandestino. Mas este incessante labor escondia uma miséria perseverante e trágica, pois, na realidade, o trabalho que o marceneiro apresentava não respondia a nenhuma encomenda de clientes. Representava, pare ele, uma espécie de narcótico. Com o espírito monopolizado pelo trabalho ingrato, tentava esquecer a sua extrema indigência e, sobretudo, a fome insaciável que o devorava."


Albert Cossery, in A Casa da Morte Certa, Antígona, 2001.