Como um zombie a olhar o palácio
Deixemos de chutar para canto o que os nossos olhos vêem: o poder municipal não está ao serviço dos munícipes e de uma ideia de serviço dos interesses sociais da comunidade, mas está ao serviço do mercantilismo. Desse princípio orientador, autarcas e políticos, extraem a sua verdade: quando advogam que o mercantilismo está ao serviço da comunidade e do serviço público é quando o serviço público e a comunidade passam a estar ao serviço do mercantilismo. Ou seja, não fora isso uma desmesurada mentira, a ideologia actual do capitalismo avançado postula que a liberdade e a realização do sujeito e a sua vida comunitária é determinada pelos valores do Mercado e pela sagrada virtude da Economia. Por outras palavras, o livre uso da vida e o espaço social onde ela se expressa, com a natureza e com outros seres humanos, depende de uma relação de troca mercantil, desta ideia sufocante e maldita da hiper-mercadoria ter saltado do plano da História, das ideologias, para o plano de um processo inexorável, sem origem nem fim, sem fronteiras nem horizonte.
Neste contexto de embuste ideológico, iniquidade social e cinismo político, vamos pedir ao poder municipal que tenha em conta a lei e o PDM? O que é que podemos querer negociar com uma elite política quando para nós a vida humana e social, a sua liberdade e realização, não é negociável porque não é um negócio?
O que se pode obter ainda de quem vende o património de todos confundindo a gestão pública com a liquidação lucrativa, esvaziando de sentido a substância humana desse património, depois de desde há décadas terem eles próprios feito depender a sua humanidade de valores monetários, do dogma do mercado e do fetiche da mercadoria?
O que temos ouvido da boca de autarcas ou de governantes é aquilo que ouvimos da boca dos altos administradores de multi-nacionais ou de representantes das confederações do patronato e da finança: todo o serviço público deve desaparecer assim como desaparece a sociedade para se entronizar o indivíduo, esse ente superiormente libertado pela sociedade de consumo para nela se acoitar e ingurgitar a sua cota parte do reino da insustentabilidade, do saque e da depredação de recursos, a troco de uma passividade face à insânia da exploração humana global. Falácia da cultura neo-yuppie que esconde no discurso do individualismo não só a cegueira do egoísmo e da ganância, como o facto de ser a própria noção e possibilidade do indivíduo que desaparecem na economia de mercado actual – quantos resistem aos códigos e ao controlo dessa ideologia das relações públicas globais? Quem não afoga os seus desejos, sonhos, pensamentos, críticas, disposições, numa sociedade que substitui o rosto humano pelo rosto da mercadoria? Quantos ganham a sua individuação na propaganda do individualismo vendida a torto e a direito?
…não fora a narrativa do individualismo o canto da sereia ditado às massas e em coro pelos trovadores da esperança cínica, de Sócrates a Rui Rio, de Valentim Loureiro a George Obama, de Jardim Gonçalves a Dias Loureiro…
É tempo de nos libertarmos da agonia de uma resposta que venha do sistema. Negociar com políticos que insultam quotidianamente a inteligência e a sensibilidade de seres humanos é absorver toda a negatividade – vil e pesada – gerada pela degradação humana desse sistema. De uma vez por todas, uma só proposta vinda dos interesses políticos instalados (ou um discurso na televisão) tende a fazer incomensuravelmente pior à democracia do que mil gestos infantis de um ministro em plena Assembleia da República.
Não estamos aqui para obter uma resposta do poder municipal. Todas as respostas do poder autárquico em geral, como do governativo, já foram dadas: o capital, o interesse económico e a protecção desses interesses (e da elite restrita do círculo de interesses), excluem a possibilidade do diálogo – e o diálogo é a reversibilidade plena e democrática de um poder – e a crítica desses interesses. E a legitimação dessa democracia que começa e que se encerra numa urna de quatro em quatro anos é uma miserável e funérea ideia do que poderá ser uma democracia.
Estamos aqui para obter uma resposta das pessoas. De todos aqueles que vivem nesse misto de sonolência, impotência e humilhação causados pela realidade política do país. E a realidade política do país é, grosso-modo, dominada pura e simplesmente por uma ideia economicista, que tudo reduz à circulação de mercadorias e ao proveito de uma elite. E as pessoas que se sentem enojadas por esta grande ideia de estarem sempre perto de se tornarem uma mercadoria útil ou inepta do sistema, uma estatística da base de dados de um sistema bancário, uma vítima a mais de um sistema público de saúde, um precário a tempo inteiro e indefinido, não podem responder com o silêncio e (só) a cruz do seu voto. Não podem ceder à conquista mais sofisticada do capitalismo Ocidental, essa miscelânea entre o sistema representativo e a sociedade de consumo que desenraizou de cada cidadão a sua possibilidade e potência de intervenção, de participação e de união no espaço público.
Que resposta se pode obter de um homem que não representa os interesses da cidadania e do humano, mas os próprios interesses do sistema?
Será necessário ter como referente do estado doentio da democracia homens como Berlusconi, Mesquita Machado ou Isaltino Morais, para ilibar da nossa mais firme censura quem orienta a sua conduta pessoal e política segundo os interesses da máquina financeira, da avidez das multi-nacionais e que não equaciona nenhuma manifestação da vida humana a não ser se ela for sancionada pelo altar do lucro e pela hóstia do mercado?
E que resposta podemos obter daqueles que se não revêem nesse tipo de exemplos? O bocejo, o shopping, o cansaço, a psicanálise de café? Ou estar onde estão aqueles que recusam a preeminência do dinheiro e a ignominia de uma sociedade que converte cada humano no homem-mercadoria?
Sabemos todos que nenhum argumento racional subsiste para acreditar no Capitalismo actual como sistema político e económico – como ideologia. Que para essa ideia ser justa, democrática, socializante, era preciso acreditar que a felicidade humana dependesse desse sistema bárbaro de consumo e desperdício per capita de energia dos recursos da terra e da energia humana. Era preciso acreditar na exploração contínua do homem, do outro, nesse esclavagismo legal de estimação de uma minoria (minoria alargada que pode ir de uma multi-nacional ao café da esquina).
O território desta luta não é por isso o presidente da Câmara do Porto, mas as pessoas que não querem viver sob a mentira do lucro, que querem libertar toda a sua possibilidade de dizer que a sua vida passa também por um gesto de união solidária sem competições, sem estruturas partidárias, sem visar lucros, juros, contas, dívidas ou proveitos, mas apenas contar com a riqueza do humano.
Que mais precisamos de ver para sairmos do nosso sono?
Os Vadios, 7 de Julho de 2009, Porto