«É mentira que o Gato Vadio perdeu o poiso porque sempre viveu na pairação
Há mais de doze quinze! anos dezenas de pessoas pariram um Gato Vadio.
Uma criatura impossível e imperfeita, nasceu de uma aventura que ainda hoje está em devir. O nascituro começou logo por falhar no dia de abertura. Fez-se tudo para dar à luz no dia 1 de Abril, mas o estaminé abriu a 2 de Abril de 2007. Teria sido simbólico e uma auto-ironia espernear no dia simbolicamente consagrado “à mentira”. O facto é que o gatil sempre foi um antro onde se caçaram as reais mentiras quotidianas que colonizam o calendário em vigor.
Já devem ter percebido que este texto tem o rabo de fora: vai ser percorrido pela suspeição de quem o escreve. Falar sobre o Gato Vadio vai soar sempre a auto-elogio. Preferia antes vestir a pelo do lobo e, sobretudo, olhar para o futuro em vez de deitar luz sobre eixos matriciais que sustentaram o passado daquele território vadio. Ao longo do tempo, dei-me conta de certas “invisibilizações” de traços fundamentais que faziam parte integral do código genético do Gato. Por vezes, mesmo a malta mais vadia passou ao lado de como se ergueram aquelas paredes móveis e mutantes. Pese embora possa parecer extemporânea, esta narração busca ser um complemento à história do projecto.
Este laudo disfarçado não devia dispensar um apanhado crítico de 12 anos de vivências. Contudo, essa análise das antíteses – das contradições, das insuficiências e dos limites da Gato Vadio – é um debate que devia ser realizado pelos distintos colectivos internos que deram o seu tempo, esforço e trabalho para manter de pé a ternurenta sanha vadia e alimentar uma inaudita sede felina de constituir novos horizontes e práticas na paisagem portuense. Noutro momento e noutro espaço, chegará o momento de avançar nesse espelho reverso de olhar para dentro.
Entretanto, num olhar virado para fora, nessa dramaturgia entre 2007 e 2011 foram personagens chave:
Antes da abertura, o esforço de desmontar uma peixaria e transvesti-la de livraria vadia teve a participação de várias pessoas que voluntariamente, por amizade e por se identificarem com o projecto que ali nascia, deram uma valente ajuda. Não vou conseguir lembrar-me de toda a gente…
andou lá o meu pai, o meu padrinho Manuel Loureiro , o meu cunhado David Figueiredo David, o Tueba (!) e a inenarrável trupe dos seus amigos que me faziam escangalhar a rir enquanto eu chapava massa mal amanhadamente, a Maja Marek, mãe das minhas outras criaturas, o Huguinho, enfim, um tropel de gente que deu um contributo precioso.
O carcanhol para por de pé a livraria veio exclusivamente de bago colhido na emigração, em terras de sua majestade.
A esmagadora gratuitidade das actividades kulturais e afins, tirando os dias de festarola-komezaina, foram uma marca registada.
Nenhuma acumulação da produção imaterial é pertença nossa. Esse conhecimento, saber&fazer, é comum, faz parte de um património intemporal de criação e recriação. O acesso livre a esse maná era e é um ponto importante da orientação dos vadi@s. Como dizia o Antonio Silva Oliveira ou o António Sida Oliveira das Mortas: “Vocês aqui fazem um serviço público”.
O Gato gerava pouco guito, mas era austeramente auto-sustentável. A fortuna sempre foi um obstáculo à felicidade. Se por mim posso falar, nenhuma estabilidade económica (que seria merecida) paga essa felicidade, nem ontem nem hoje. A fortuna ali colhida, se falamos em graveto, chegava para a felicidade e a preocupação q.b. (ui...), e sobrava para as farturas do Amial ao Domingo em dia de festa. Entenda-se: pagava-se primeiro e religiosamente todas as continhas e o que sobrava era pouco mas chegava para o pão (embora não evitasse “o toda a gente ralha e ninguém tem razão!!!). A médio prazo, a vida nesse capítulo só se tornou possível porque no Gato Vadio pariu-se o projecto editorial da 7 Nós, que permitiu dar longevidade à sustentabilidade económica dessa aventura. Ainda sobra as continhas, a associação que em 2011 viria a herdar o projecto e o usufruto do Gato Vadio, para lá de compromissos correntes, não herdou dívidas porque as não havia.
Os colaboradores remunerados. Há-de ficar para registo histórico que os vadios aperfilhados a Maria Vitor Mota (Mavi), o Joaquím Quimpo (Javier) e o Hernâni Pessoa (Nani) venciam à hora o mesmo que o bestunto-mor. Apesar de eu assumir compromissos gerais (e sobretudo as preocupações que daí advinham… ninguém te mandou ó estafermo!) que não passavam por eles, não podia haver uma política de remuneração diferenciada. Não se prega na rua uma coisa e em casa niqueles. Nã nã, não se espalha ao vento um ideal libertário de remuneração para depois não o praticar sob o próprio telhado. Era pouco o que ganhavam à hora (e o Nani ainda quis ser voluntário à força, mas eu pespegava-lhe com o “ordenado”), mas era justo que recebessem o mesmo. Mesmo se depois esbanjassem o ordenado em bejecas e favaios!
Além disso, todos eles sabiam onde estavam as continhas de cada mês, tinham livre acesso. (Claro, mistura de confiança e preguicite estes mandriões e mandriona :) nunca se deram ao trabalho de fazer as contas mensais…).
Mas espera lá e a célebre divisão do trabalho? Não havia cá disso. Tínhamos tod@s a liberdade de fazer o que quiséssemos e os mesmos deveres (bom, como já fiz notar, eu não podia não ter mais deveres). Todos limpávamos a retrete e quem quisesse tinha a liberdade de organizar as actividades kulturales.
Há coisas que estando papagueadas nos ideais estavam juradas na ética. Nenhum programa se aguentaria de pé de outra forma.
A Gata Vadia tinha os braços abertos qual avó universal que refaz o sentido do mundo no seu regaço. Espaço de acolhimento – de acolhimento também da diferença – e de convívio, vários grupos de amizade ali se travaram e perduram até hoje (né Giancarlo Pace ? Rui Baptista? Ana Kapa? Pedro Rocha, Óscar, Luis Chambel, Natacha Sampaio, Lúcia Evangelista… ou reencontros Catarina Brito, ou encontros cósmicos com o Miguel e a Eveline do Gerês...). Espaço que ao longo do tempo acolheu vários colectivos que ali conspiravam à sua maneira (FERVE, Maldita Arquitectura…), outros com quem se cooperou (a Iniciativa libertária do Porto, com a Casa da Horta, Casa Viva, Musas e Terra Viva; a Assembleia Popular do Porto nascida do 12 de Março de 2011; o colectivo galego da Estaleiro), outros ali fundados (o Projecto de Educação Libertária ou a editora 7 Nós).
A comunhão de vozes e o esforço de ligar gentes foram sincronias do dia-a-dia. Muita gente ali chegava sozinha, ou vinha a só, para se sentir acolhida. Resumiu esse “sentimento” o Tó Maia: “Quando saímos à noite ao Gato não precisamos de vestir atitude”.
Em 2011 criou-se a associação Saco de Gatos, que desde então se ocupa dos destinos da livraria e do espaço de intervenção Gato Vadio. A génese da associação resultou de um apelo generalizado que dirigi pessoalmente à comunidade do Gato Vadio (seus amig@s, companheir@s de viagem, ou simples habitués).
A decisão de transformar um projecto de iniciativa pessoal numa associação não teve como motivo salvar o projecto. Não era por ser insustentável economicamente que o apelo foi feito, um mito a desfazer. O objectivo era salvar a minha vida não-Vadia! Era libertar-me de horas no Gato para dispôr de mais tempo de lazer e trabalho parental, que sobrecarregavam a mãe das minhas criaturas e a mim me tiravam tempo para estar com a Salomé e o Jan.
Ao apelo acorreram 21 pessoas. De entre elas, 14 discutiram e deliberaram até ao fim os estatutos da associação e o seu regulamento. Destaco, em síntese, a seguinte passagem: “A Saco de Gatos compromete-se com as actividades realizadas a estimular a solidariedade dos intervenientes e a desenvolver, no espaço público onde intervém, uma cultura participativa, interventiva e crítica, fundada na decisão livre e baseada nos princípios da discussão, da democracia directa e da partilha horizontal das decisões.
A prática diária do espírito destes valores consagra a importância real, e não meramente formal, dos princípios que vinculam os associados da Saco de Gatos.”
Vários meses depois de esse objectivo ter sido cumprido, razões pessoais me levaram a emigrar. Nesse momento (e nenhum pé-rapado com prole a dobrar abala do país sem pessoalmente se endividar…), o espólio, todo ele, foi deixado por mim ao usufruto da associação Saco Gatos. A própria sobrevivência do projecto, nesse longínquo rosário de 2011 e até hoje na nova morada à maternidade, dependeu dessa decisão de sobrepor o direito de uso ao direito de posse (risos do proprietário!). E siga!
Infelizmente, não tenho as cotas em dia mas devia!
Era (foi, é…) um espaço de forças e fluxos que transcendiam o território físico e também o seu manancial simbólico de idealizações-realizações. Um espaço de porta aberta cujas fronteiras não cabiam e não cabem (digo eu) num logradouro. Aberto e inclusivo, ponto de encontro e, raramente, de desencontro... mas o desencontro era livre de punitivismo.
Embora de pouca relevância face às factualidades expostas acima, não tinha como visão criar um microcosmos desligado da realidade ao fundo da rua. Menos ainda, alimentar o maniqueísmo dos antagonismos. Procurei, não sem contradições, não ficar recluso de uma cidade ideal.
Se porventura o Gato Vadio foi subjectivado pelo olhar externo – do olhar do poder oficial ao olhar da margem – como uma contracultura da cidade, deve haver aí exagero, mitificação, equívoco…. Com ternura ronrono, dando a volta ao texto: no meu entender ali sempre procurei fazer daquilo a virtualidade toda por inteira de ser uma cultura: auto-suficiente, inclusiva, movendo-se no tempo de pés na terra tentando ao máximo ser justo até à medula com quem colaborava na aventura vadia... e, bela contradição, assumir essa vontade indómita de fazer da vida um acto poético que cria e dá, e volta a dar, esse descuido da vã realidade que desembocava no disparate, na paródia à efemeridade, na ironia e auto-ironia, enfim, no avesso do que nos faz morrer e afirma bem alto o sonho que nos faz pairar sobre o tempo.
Merecem as centenas, pelos vistos milhares de fiéis do Gato, esse gesto de ética.
Não é como espectador que vamos decifrar o enigma da vida e transformar a realidade. Sou uma criança que participou no engenho de um brinquedo que passou pelas mãos de tanta gente e que se deu em oferta à cidade do Porto. Mais do que cansado, quando recolhia a casa ficava inquieto por a festa só continuar no amanhã seguinte.
Que esse festim de vida nua, esse bodo gratuito de estar-se fazendo, siga a rusga à sua maneira. Continuemos a ganhar poiso e muita, muita pairação.
Obrigado a tod@s.»
Júlio do Carmo Gomes, Junho de 2020