Hélastre, 2022
No próximo sábado, 5 de fevereiro, voltamos a ter connosco Regina Guimarães e o artesão de livros Daniel Ferreira, que nos apresentarão o último livro de poesia daquela poeta e tradutora: Caderno das Feridas. 6 - 2012 a 6 - 2013, Edições Hélastre.
Sendo, manifestamente, um livro de poesia, não há aqui poemas sem tempo, como tantos que por aí se prestam a descarnados lamentos e evocações. A poesia de Regina Guimarães habita o tempo, lê-o, provoca-o, fere-o ou esculpe-o. Seja qual for o significado das datas inscritas no título deste Caderno das Feridas, elas não se submetem a essa cronologia geral que nos oprime pela lei do tempo impessoal. Aqui, entra-se na temporalização sem calendário, numa observação avessa a postos de vigia: «sorrio no buraco onde me escondo / sorrio no buraco onde me mostro / os meus olhos de ver são como vendas / contudo olhando o nunca sempre vendo» («Onde em onde»).
Neste convívio com Regina Guimarães, escutá-la-emos ler os seus poemas, interrogá-los-emos, faremos perguntas à poesia, à memória e ao amor.
assim pudesse a cabeça
dar por mim a volta ao corpo
navegando sem cautela
ao largo das minhas costas
das praias onde naufrago
das ilhas em que me habitam
assim pudesse a cabeça
regressar ao cais de embarque
com ar de mercadoria
cheirando a estrelas de sal
e a fundo de garrafa
com hostes de estivadores
descarregando seus fardos
assim pudesse a cabeça
dormir o sono do justo
sobre pesadas bagagens
trouxas, sacos e malotes
fazendo do desconforto
seu berço incondicional
sua canção de embalar
assim pudesse a cabeça
não chegar a não chegar
não partir quando previsto
não acenar aos ausentes
não avistar entre nuvens
outras terras de ninguém
e outro ninguém a bordo
assim pudesse a cabeça
acordar onde eu acordo