NA BIBLIOTECA DO GATO VADIO

 

O Gato Vadio não é apenas uma livraria. Mesmo que a livraria seja por várias razões essencial – divulgação e apoio à actividade editorial independente, sustentação da associação, representação de áreas editoriais ausentes do circuito livreiro comum –, temos também disponível um espaço de biblioteca que muitos ainda não conhecem. Criada a partir de vários espólios, rastos de vidas que cruzaram o Gato, e constantemente receptiva a novas dádivas, a biblioteca tem vindo a crescer em número e qualidade. Nesta encontram-se algumas edições portuguesas e estrangeiras da maior importância, hoje esgotadas ou esquecidas. É esse o papel de qualquer biblioteca: tornar acessíveis textos que conservam – ou acrescem – a sua força ao longo do tempo. Nos tempos mais recentes, podemos falar de uma função de resistência das bibliotecas, na medida em que estas preservam, na gratuitidade, o acesso aos textos num formato físico que continua a ser, não só o que mais respeita o meio ambiente, mas sobretudo aquele que se adequa ao tempo da leitura e da reflexão. Na medida em que estamos convencidos de que o tempo do império dos ecrãs deverá passar a curto ou médio prazo, continuamos a querer fazer circular os livros impressos. Os PDFs e outros eBooks podem ser úteis aqui e ali, mas não são o meio ideal para leituras essenciais, como é o caso do livro da nossa biblioteca que queremos hoje destacar:

Ronald D. Laing, A Psiquiatria em Questão, Presença, Lisboa, 1979.

O título português é restritivo (como muitas vezes acontece), e por isso aqui deixamos o título original: The Politics of Experience and the Bird of Paradise. Evidentemente, a «experiência» aqui em questão é também aquela da actividade psiquiátrica do próprio Laing, mas o conceito de experiência deve aqui ser lido no sentido mais radical da construção e perda que ocorrem na relação do eu com o real. O livro abre com um magnífico texto intitulado «Pessoas e experiência», onde Laing parte da verificação de que «podemos observar o comportamento dos outros mas não a sua experiência». A nossa experiência, sendo uma dimensão que está oculta para os outros, enquanto o comportamento se apresenta exposto, é necessariamente objecto das suposições ou da adivinhação dos que contactam connosco. «Não posso experimentar a sua experiência. Você não pode experimentar a minha experiência. Um e outro somos homens invisíveis. Todos os homens são invisíveis uns para os outros. A experiência é a invisibilidade do homem pelo homem. É aquilo a que dantes se chamava a alma. Como invisibilidade do homem pelo homem, a experiência é simultaneamente mais evidente que tudo no mundo. Só a experiência é evidente, comprovativa» (pp. 16-17). Se continuássemos a ler o texto de Laing, saberíamos que este discute aí a tessitura experiencial que vamos tecendo a partir dos elementos sensoriais, intuitivos, corpóreos, linguísticos e psíquicos. Toda essa malha perceptiva e intuitiva que recorre à invisibilidade essencial da experiência se interessa pelo que em cada um de nós se encontra em estado de abissalidade, de falha, de inadequação ou mesmo de acesso psicótico. Só nos apercebemos daquilo que mais anseia por chegar a nós se, de alguma forma, colocarmos entre parêntesis os nossos juízos imediatos e lineares sobre os comportamentos. Se conseguirmos relativizar a normatividade comportamental que oculta quem está diante de nós, poderemos encontrar a evidência da sua experiência. Para chegar ao outro precisamos de acolher a sua experiência, o que constitui um salto para além das normas sociais e do espírito de grupo, já que essa experiência é em boa medida irrepresentável mas não inconcebível. 

O leitor que, em plena política da pandemia, lê o que Laing escreveu no início dos anos 1970, imediatamente se apercebe de que a estereotipia comportamental terá atingido neste ano de 2020 o seu paroxismo. Quem conhece a relação de Laing com a chamada antipsiquiatria saberá que o que aí estava em causa não era propriamente uma denegação da psicose e dos seus riscos, mas antes a submissão da medicina psiquiátrica às necessidades de um policiamento comportamental: o doente psiquiátrico é encerrado no manicómio porque o seu comportamento afronta as regras do bom comportamento em sociedade. A esta normatividade comportamental, Laing acrescenta a díade comportamento/experiência: o psicótico tende a exibir, em lugares trocados, o que nele se apresenta à superfície – a experiência – com o que desce às profundezas – a chamada coerência comportamental do sujeito. A psiquiatria parece ter sempre tomado essa exposição da experiência como inadequada, desaprovando-a activamente: «Os psiquiatras sempre deram pouca atenção à experiência do paciente. Até na psicanálise há uma tendência tenaz para considerar as experiências do esquizofrénico como irreais ou sem valor» (p. 102). É sabido que, desde o período em que Laing escreveu, a medicação química substituiu, por vezes com efeitos não menos desastrosos, o manicómio e o colete-de-forças. Tratou-se da opção pela invisibilidade social das «doenças mentais». Países como Portugal – onde escasseia uma cultural institucional do cuidado – apressaram-se a fechar as suas instituições psiquiátricas, que eram em si mesmas degradantes, preferindo drogar os seus cidadãos até à sedação da experiência e à domesticação do comportamento. Nas últimas décadas, a dificuldade experiencial é objecto de silenciamento. 

As políticas que são desenvolvidas em torno da COVID não estão longe deste duplo receituário de sedação/domesticação, mas são agora estendidas à generalidade da população. Ao dizê-lo, note-se bem, não estamos a tomar parte nas querelas, em grande medida estéreis, em torno das medidas sanitárias ou da realidade da doença. Importa antes sublinhar que esta pandemia tem servido para fazer avançar um largo conjunto de agendas sociais e tecnocráticas que esperavam uma crise oportuna. O quadro geral destas políticas é bastante claro: instituir, sob a aparência de «distanciamento social», formas de apartamento ontológico, ou seja, formas que visam retirar às pessoas as circunstâncias e a disponibilidade psíquica que lhes permitiriam perscrutar ou adivinhar a dimensão experiencial dos outros, essa dimensão profunda, em grande medida oculta, que fornece o que, em linguagem mística, poderíamos designar como «comunhão», contacto íntimo, partilha.

Avançam antes, a caminho da sua normalização social (mas já antes pré-cozinhadas), medidas exclusivamente orientadas para a dimensão comportamental, para a sua monitorização, sanção e regulação. A agenda sanitária desdobra-se em agenda comportamental e epistemológica nos campos da política, da saúde, da educação, da cultura, das relações humanas, incluindo a experiência sexual e afectiva. Em todos estes domínios, trata-se de fazer de cada um de nós um ser dotado de comportamentos sem ambiguidade ou profundidade. Sociedades assépticas e reguladas para cidadãos objectivados. É ainda Laing quem escreve: «A experiência é invisível a outrem, mas não é mais “subjectiva” que “objectiva”, não é mais “interior” que “exterior”, não é mais processo passivo que exercício activo, não é mais psíquica que somática; não é um dado discutível deduzido mais da introspecção que da observação. Sobretudo, não é um processo “intrapsíquico”. As trocas, relações objectais, relações pessoais, transferências, contratransferências que se produzem entre os seres não são da mesma ordem que as simples relações de dois objectos no espaço, mesmo sendo cada um deles dotado de “processos intrapsíquicos”» (pp. 18-19).

Jorge Leandro Rosa