De qualquer maneira, matei o Boris Johnson.
Sabes
quem é, não?
Não
foi grande crime, na verdade.
Foi,
parece-me, em 2005, talvez 2006
ia
ele na bicicleta
a
descer a Charing Cross Road
e
eu, claro, ia a pé.
Seja
como for, um autocarro vinha atrás dele
e
eu aproveitei. Empurrei-o e fi-lo cair
o
autocarro passou-lhe em cima e lá estava ele morto.
Ni’guém
me viu. Ni’guém me deteve.
Tudo
o que se tem passado desde aí foi
um
sonho. Um sonho fundo e horrível.
Acorda.
Por amor de todos nós, acorda.
(tradução
de JLR)
O autor do mês de Março
Sean Bonney é um poeta inglês nascido em Brighton, tendo crescido no norte de Inglaterra. Viveu em Londres e em Berlim, onde veio a morrer em Novembro de 2019. Entre outros livros, publicou Blade Pitch Control Unit (2005), Baudelaire in English (2008), Document (2009), The Commons (2011), Happiness: Poems After Rimbaud (2011), Letters Against the Firmament (2015) [Cartas contra o Firmamento] e Our Death (2019). Mais do que um autor com actividade paralela na poesia e no ensaio, podemos dizer que Bonney escreveu a partir das insuficiências de cada género, uma experiência que, sendo o escrutínio das incisões que a incomunicação abre nas ruas de Londres, se assemelha àquela do seu encontro com as «fendas pretas»: «É isto a evidência: a laje tem uma fenda preta que a percorre. Nenhum significado, ele imagina-a como uma triangulação da memória, do poder e dos nomes, um dispositivo mnemónico para a compreensão da cidade enquanto activação de identidades fixas: ou de como o triângulo se torna uma pirâmide facetada por números, diamantes e a imaginação empoada de três celebridades… Isto é história solidificada. Ninguém pode explicá-lo, mas é simples – somos terror, a fenda está carimbada em cada um de nós» (Document: Poems, Diagrams, Manifestos, 2009).
«O mapa cosmológico da cidade. Um périplo pelas condições extremas da poesia de Sean Bonney»
Cartas contra o firmamento. Leitura integral
Francisco Silva.Numa conferência sobre a disciplina sectária da literatura de viagens, um professor afirmou que tinha consciência do privilégio que percorria a área: "quem tem fome não escreve". Queria responder da melhor forma possível, mas fiquei imediatamente nervoso. Talvez tenha razões para isso: mal abri a boca e se percebeu em que sentido eu ia, reparei nos olhares trocados entre alguns professores. Tentei recompor-me. Que podemos fazer uma revisão do passado para resgatar as vozes esquecidas. Que a luz do dia ilumina um corpus literário cuja composição não é natural, que não pode ser ignorada a selecção activa a todo o momento. E eu não sabia exemplos se mos pedissem (que chegassem a esse ponto seria, contudo, a prova da desonestidade).
Dias depois foi-me
chegando aos poucos tudo aquilo que não fui capaz de dizer. Lembrei-me
da Estética da Fome, do Glauber Rocha, da noção de cultura idêntica à
fome em Artaud. Cintilava, devagar, um grupo de vozes que me fazia
sentir menos ridículo, menos sozinho debaixo do desdém. Mas a maior
força veio de uma frase que me ajudou a arrumar algumas coisas dentro da
minha cabeça: que um Blakeano consideraria sem dificuldade o trabalho
de um escritor que não existiu. Na altura, apesar de pressentir a
importância destas palavras, tudo se mantinha relativamente opaco. Fui
tentando aproximar disto a noção de "hieróglifo da mercadoria", como a
desenhou Rancière: textos impressos, objectos estranhos e ilegíveis
pelas letras se confundirem com as dedadas de óleo dos operários que os
devolviam à luz. Linhas e linhas mudas que conservavam no seu silêncio
uma força prestes a rebentar em todas as direcções. Melhor do que
ninguém, o Sean entendeu a "ambiguidade básica do modernismo extremo":
"a dialética da poesia radical significava que também era realizada na
brutalidade do próprio capital". Estes "objectos poéticos" negros e
oleosos rasgavam o código estético do mundo a partir do seu mutismo,
ainda que "o grande silêncio [esteja] repleto de ruídos."
Vamos
largar juntos a constelação de estrelas e de nomes que nos é exigida
sempre que lhes fazemos frente. Dia 14 de Março, na (nova) Gato Vadio,
lerei integralmente o Cartas contra o Firmamento. Um cometa deixa o seu
rasto de luz a partir das 21:30.
Venham, venham!
«em vez de ‘amo-te’ diz que se foda a polícia, em vez de
‘os fogos celestiais’ diz que se foda a polícia, não digas
‘contratação’ não digas ‘trostky’ diz que se foda a polícia
em vez de ‘despertador’ diz que se foda a polícia
em vez de ‘o meu transporte para o trabalho’ em vez de
‘sistema eleitoral’ em vez de ‘vento solar contínuo’ diz
[que se foda a polícia
não digas ‘perdi a noção das minhas visões’ não digas
‘essa faculdade humana tão vilipendiada’ não digas
‘suicidado da sociedade’ diz que se foda a polícia, em vez
[de ‘o movimento
das esferas celestes’ diz que se foda a polícia, em vez de
‘o globo luzente da lua’ em vez de ‘a Rainha Mab’ diz
que se foda a polícia, não digas ‘débito directo’ não digas
[‘adere ao partido’
diz ‘o teu sono é proveito para o patrão’ e depois diz que se foda a polícia
não digas ‘hora de ponta’ diz que se foda a polícia, não digas
‘eis os passos que dei para arranjar emprego’ diz que se foda a polícia
não digas ‘um Caffè Latte fachavor’ diz que se foda a polícia, em vez de
‘a força gravitacional da terra’ diz que se foda a polícia, em vez de
‘faz o novo’ diz que se foda a polícia
não digas ‘uns trocos’
diz que se foda a polícia, não digas ‘feliz ano novo’ diz
[que se foda a polícia
diz talvez ‘reescrever o calendário’ mas depois disso, logo
depois disso diz que se foda a polícia, em vez de ‘pedra filosofal’
[em vez de
‘casamento real’ em vez de ‘o labor da transmutação’ em vez de ‘amor
à beleza’ diz que se foda a polícia
diz sem justiça não haverá paz e depois diz que se foda a polícia»
(Tradução de Miguel
Cardoso)