Nas próximas semanas, o gato fica atrás da janela. Mas enquanto aí está, pensa. Pensa no que se passa do lado de lá da sua janela. É que lá fora não há apenas um vírus, embora assim pareça a muitos dos que preferem observar os media, desprezando o observatório privilegiado que é a sua janela. O gato – qualquer gato – sabe estar confinado permanecendo livre. Sabe proteger-se sendo capaz de ver a ironia dessa «protecção». «É também isso que quer dizer “manter-se à janela”: manter-se nesse compromisso entre duas exigências igualmente absolutas e inteiramente incompatíveis, a do interior que protege a mão que escreve e a do exterior que ensina a ver subtraindo o olhar a toda a protecção» (Rancière, As Margens da Ficção, kkym, p. 48).
O
gato não apenas observa, mas também escuta os apelos à guerra que
chegam de todos os lados. Pandemia e guerra tornaram-se quase
sinónimos na modernidade industrial. A gripe espanhola veio na
esteira da Primeira Grande Guerra. Ela foi, na verdade, a arma
secreta do conflito que normalizou a guerra química e
bacteriológica. Como todos os países em guerra proibiram a
referência à epidemia, esta pôde expandir-se, fazendo mais mortos
do que aqueles directamente vitimados pelos combates. Apollinaire,
que tinha levado em cheio com um estilhaço na cabeça em 1916 e
ostentava em Paris a tira de couro que lhe mantinha unido o crânio,
morre afinal da gripe em 1918. A situação actual é a imagem
invertida do que se passou há cem anos: todos falam do corona-vírus,
todos os governos nos dizem que temos de aderir a esta «guerra»
para o nosso bem, mas todos silenciam o facto de outros jogos de
guerra se terem já instalado de novo na Europa.
As metáforas nunca são inocentes. Sobretudo aquelas que nos colam à pele. Nas últimas semanas começaram a decorrer os maiores exercícios militares da NATO na Europa Ocidental, o «Defender Europe 20». Com o COVID-19, a sua escala foi para já reduzida, mas nada foi anulado. Alguém prepara a guerra enquanto tentamos sobreviver à crise sanitária e à mudança climática. Prepara-a em silêncio, como se ela fosse mais inevitável do que a propagação viral.
O gato conhece desde há muito estes entrelaçamentos entre a ocultação e o medo, os apelos à calma e o atear do incêndio. Viu-os ao longo das suas sete vidas. A metáfora da guerra sob o signo do 19 passará ao 20 quando os desastres sociais e ecológicos reerguerem a sua cabeça bélica, a cabeça a la Apollinaire.
JLR