vozes, gritos, palavra.

"Apetece-me chorar, mas Deus manda-me escrever. Não quer que eu fique sem fazer nada. A minha mulher continua a chorar. Eu também choro. Tenho medo de que o doutor Fränkel venha dizer-me que a minha mulher está a chorar, enquanto eu escrevo. Não irei ter com ela, porque a culpa não é minha. Irei comer sozinho, se deus me manda ir. A minha filha vê e ouve tudo, e espero que me compreenda. Amo a Kyra, mas ela não me sente, porque tem uma bêbada com ela. Vi os frascos de álcool. Um frasco de álcool a noventa graus e outro diluído em água. A minha mulher não vê, mas espero que a mãe dela veja e se desfaça da mulher e do frasco. A minha Kyra sente que a amo, mas pensa que estou doente, porque lhe andaram a contar histórias. Eles perguntam-me se durmo bem, e eu digo-lhes que durmo sempre bem. Não sei o que hei-de escrever, mas Deus quer que eu escreva, porque sabe o que isso significa. Em breve, irei a Paris e farei tal impressão que o mundo inteiro vai falar de mim. Não quero que se pense que sou um grande escritor. Não quero que se pense que sou um grande artista. Não quero que se diga que sou um grande homem. Sou um homem simples que sofreu muito. Não acredito que Cristo tenha sofrido tanto como eu tive de sofrer durante toda a minha vida. Amo a vida e quero viver."

Nijinski, in Cadernos, Assírio & Alvim, 2004.