Ursula Le Guin, O Dia antes da Revolução e outros contos, Barricada de Livros, 2021, 8€.
A mulher que inventou o princípio da liberdade
Depois de anos a ler a Ursula Le Guin na colecção Argonauta e noutras que tais, geralmente em mau papel e traduções variáveis, que a ficção-científica entrava então, juntamente com a literatura policial, nos gostos menos canónicos, encontramos agora uma edição portuguesa que repõe alguns elementos importantes do percurso – tanto político quanto literário – desta grande escritora. Para chegar aqui, Os Despojados tiveram de correr os bolsos portugueses atafegados numas capas horrendas, uma espécie de barreira iniciática para os que sabiam ou adivinhavam. Prova de que é possível ocultar um autor publicando-o em abundância.
É verdade que já corria a informação de que Ursula Le Guin tinha uma preferência política, social e estética pelo anarquismo. Nela, «anarquismo» adquiria sentidos muito precisos, mas sobretudo inventivos, numa espécie de recriação constante da figura do anarquista, esse «criador de mitos e desrespeitador da lei». Podemos começar pelo princípio e lembrar que ela era também uma pacifista. A tradição anarco-pacifista era importante nos EUA e Le Guin reconhecia-se nela. Em vez de lhe dificultar a descrição dos conflitos e da violência, esse posicionamento aguçou nela a capacidade de observação e análise da emergência, decurso e consequências da violência, em particular da violência social e opressora, mas também da violência que se aloja nos seres.Num plano talvez mais singular, o anarquismo de Ursula era, como ela própria lhe chamava, Ying. No seu blogue, num «post» intitulado «Utopiyin, Utopiyang», escreve já em 2015: «O tipo de pensamento que estamos, finalmente, a ter sobre como abandonar as finalidades da dominação humana e do crescimento ilimitado em favor daquelas da adaptabilidade humana e sobrevivência a longo prazo é uma mudança do Yang para o Ying, pelo que envolve a aceitação da impermanência e da imperfeição, uma paciência para com a incerteza e a improvisação, uma amizade com a água, a escuridão e a terra». Acreditamos que depois desta preciosa edição da Barricada de Livros, o livro mais necessário seria uma versão portuguesa feita partir da edição que Ursula Le Guin fez do Tao Te Ching, com os seus enquadramentos, leituras e notas: «O mais adorável de todos os grandes textos religiosos. Divertido, acerbo, amável, modesto, indestrutivelmente ultrajante e inesgotavelmente refrescante. De todas as fontes profundas, esta é a água mais pura. Para mim, é também a fonte mais profunda.»
Mas, para já, é tempo de lermos estes três contos axiais da obra de Le Guin. Neles, o tempo existencial da liberdade declina-se segundo as variações anímicas daqueles que a transportam. Queremos ainda assinalar as belíssimas ilustrações de Manuel Almeida e Sousa.
Sim, Le Guin inventou o princípio da liberdade. Em cada um dos seus romances, contos, traduções e ensaios, ela colocou em movimento o gesto inicial dos seres que se inclinam para a liberdade. Esse princípio abriga-se em cada um de nós. «A sociedade odoniana era concebida como uma revolução permanente, e a revolução começa na mente que pensa» (Os Despojados).
Jorge Leandro Rosa