OS SONS DA FLAUTA

A propósito da saída da revista Flauta de Luz, nº 8, Julho de 2021. 368 páginas (separata: 50 pp.)  €10

A Flauta de Luz chegou ao seu oitavo número. Embora senhora de uma afirmação destacada no espaço das revistas de pensamento e crítica, nem por isso ela deixa de ser o objecto indomável saído da imaginação e da experiência do seu editor, Júlio Henriques. Este boletim de topografia tornou-se um instrumento fundamental para a nossa orientação nas deslocações territoriais que hoje condicionam as nossas existências. Esta particular topografia estuda os acidentes geográficos, não para os aplanar e eliminar, antes para os estudar e expor como elementos da incessante criatividade da Terra e dos seus habitantes. Trata-se, nesse sentido, do oposto de uma vulgar revista de arquitectura, de ordenamento do território ou de estratégia militar; a ordem submete-se nela aos movimentos naturais e humanos que subsistem e se expandem sob a camada aparentemente inamovível do «construído», seja ele urbano, industrial, ideológico ou sócio-económico. 

A Flauta de Luz prova que é possível produzir um objecto editorial fora dos cânones construtivistas e logocêntricos do nosso tempo, neste caso, um número que nas suas mais de 400 páginas apresenta uma espécie de diversidade cósmica na forma como se oferece ao leitor (leitor que, assim, também remodela o movimento vivo da sua leitura). Cosmos, de facto, na medida em que toda a consideração que aí se desenvolve sobre o nosso tempo – e quase tudo nesta revista parte de experiências concretas do que vivemos – navega para longe do «futuro» e das suas projecções de poder. A Flauta faz soar o «antifuturo indígena» (p. 77). 

Dois destaques neste número:

Em primeiro lugar, a «separata sobre a viagem zapatista pela vida». Foi em 22 de Junho que a delegação de mulheres zapatistas desembarcou na Galiza, aqui bem perto de nós. Acedendo aos meios de comunicação, quem daria por isso? Felizmente, o jornal Mapa e o site Guilhotina.info têm vindo a oferecer-nos a reportagem dessa chegada e do percurso europeu que se lhe segue. No caso que nos ocupa, a Flauta de Luz privilegia a contextualização e o significado da presença das mulheres zapatistas na Europa, não só por meio dos artigos que publica no seu miolo, mas também na separata que acompanha este número. Vendida também à parte da revista, essa separata está agora disponível no Gato ao preço de €2 ou mais, que revertem integralmente para a Caravana Zapatista. Nesta, o leitor pode tomar contacto com alguma informação essencial sobre o desiderato destes visitantes chegados de Chiapas, no México: «Só nos unem muito poucas coisas. O fazermos nossas as dores da Terra: a violência contra as mulheres, a perseguição e desprezo às pessoas diferentes na identidade afectiva, emocional, sexual; o aniquilamento da infância; o genocídio dos originários; o racismo; o militarismo; a exploração; o saque; a destruição da natureza.» Destaque ainda para o longo artigo de Jérôme Baschet, um medievalista francês que ensina na Universidade Autónoma de Chiapas. Dele respigamos a seguinte passagem: «Afirmar a impossibilidade de uma realização acabada da autonomia é o que nos premune contra o risco de uma utopia normativa que pretenderia uma realização perfeita de princípios definidos previamente e de forma abstracta. Na verdade, a experiência zapatista sugere a necessidade de voltar a pôr à prova, incessantemente, as próprias formas de autonomia, de modo a lutar contra o perigo, sempre latente, da separação entre governantes e governados, e contra o risco de petrificação de qualquer realidade instituída».

O segundo destaque vai para o belo e abundante – cerca de cem páginas – dossier em torno de Alberto Pimenta. Na impossibilidade de o resumirmos, dele respigamos algumas linhas do artigo de Rui Miguel Ribeiro: «O desafio que um livro de Alberto Pimenta apresentava nos anos setenta é o mesmo que apresenta hoje em 2021, sem qualquer decalque reprodutivo, sem semelhanças entre obras ou revisitações. Nele não existe o poema maquinal ou a máquina de poesia, cada livro ganha a sua autonomia enquanto obra. O seu preceito inventivo recusa qualquer ideia convencional de técnica ou formalismo, está do lado da proposta integralmente experimental que se inaugura a si mesma e que reclama uma leitura, inventando-a como se fosse a primeira vez. Por isso, cada obra sua contém, e é em si, o gesto radical de o ser». A complementar com as igualmente penetrantes observações de Maria Irene Ramalho sobre o domínio e a admiração da tradição poética ocidental que perpassam em Pimenta.

Jorge Leandro Rosa