Sobre duas obras que as Edições do Saguão acabam de editar:
Virá a Morte e Terá os teus Olhos, de Cesare Pavese (68 páginas. €13) e
O Nascer do Mundo nas suas Passagens, de Silvina Rodrigues Lopes.
O cansaço do que vem
As Edições do Saguão acabam de editar Virá a Morte e Terá os teus Olhos, o livro de poemas póstumo de Cesare Pavese (a data do derradeiro poema antecede em quinze dias o seu suicídio). No meu exemplar da antologia bilingue Trabalhar Cansa, publicada pela Cotovia em 1997 e há muito esgotada, adquirido em segunda mão como a seguir se verifica, encontrei na página do poema que dá título a essa derradeira colectânea a anotação do leitor desconhecido: «Fabuloso!» E, destacado em caixa, «Virá a morte como um velho remorso ou um vicío absurdo.» Mas os versos que contêm estas palavras rezam assim: «Virá a morte e terá os teus olhos – / esta morte que nos acompanha de manhã à noite, insone, / surda, como um velho remorso / ou um vício absurdo. […]».
Este leitor ignoto acompanhou um primeiro aprofundamento da minha leitura de Pavese; de vez em quando, ele continuava a ler, comigo por cima do seu ombro. O segundo aprofundamento veio agora pela mão desta reedição de uma tradução parcial desse livro de Pavese feita por Rui Caeiro (recentemente falecido), à qual se reuniram seis poemas traduzidos por Rui Miguel Ribeiro. Essa tradução integrava a primeira edição da poesia de Pavese entre nós, editada pela &etc em 1990. Em quase nada divergem as versões de Carlos Leite (1997) e Rui Caeiro (1990): apenas «antigo» será preferido por Caeiro a «velho»: «um remorso antigo».
«Fabuloso», assim é este livro. Mas porquê? Ambos os tradutores se obstinam em contextualizar esta poesia: Pavese e a mãe agreste; Pavese e o fascismo; Pavese e o remorso de não ter sofrido com os companheiros de Turim; Pavese e a proximidade entre amor e morte. Sim, decerto. Mas há traços na escrita de Pavese que nos fazem lembrar Pasolini, um Pasolini que subitamente se tivesse encerrado na penumbra cheia de prenúncios. Não são, decerto, semelhantes na voz poética, que são como a noite e o dia, mas sim na confluência de uma oficina poética muito culta com uma vivência da Itália popular e uma «desconfiança» constante diante dos meios culturais. Em Pavese, acresce ainda uma rara penetração dos sentimentos existenciais, que não deixará de marcar o leitor atento à expressão lírica do eu. Para o leitor português, habituado a uma alta travessia desses planos, Pavese não deixará de ser uma descoberta pela concisão da expressão sempre perpassada pelas ameaças desejadas da vida terrestre. «Como / erva viva no ar, / estremeces e ris, / mas tu, tu és terra. / És raiz feroz. / És a terra que espera.»
Presença constante da sombra da morte que mais sublinha o quão vital é este livro na poesia europeia do século XX.
A salvaguarda do mundo
As Edições do Saguão acabam de editar uma nova antologia de ensaios de Silvina Rodrigues Lopes, O Nascer do Mundo nas suas Passagens, textos escritos entre 2010 e 2019, agora reunidos por Mariana Pinto dos Santos. A ensaística de Silvina começou por renovar a forma como se escrevia sobre literatura entre nós. Desde A Legitimação em Literatura, ou Literatura, Defesa do Atrito, mas sobretudo no livrinho-revelação Teoria da Des-Possessão (1988), sobre Maria Gabriela Llansol, a escrita de Silvina Rodrigues Lopes trouxe as questões literárias para fora do serralho dos literatos: subitamente, a literatura passava a ser questão do mundo, introdução das palavras à convivência com os seres mais diversos, libertando-as da total dependência de um universo de signos «literários», e dando-lhes algo de matéria do mundo, de entidade biológica, de nuvem, de mineral, em suma, da decisão surpreendente do vivo ou do movimento dos elementos.
Nestes ensaios, todo essa miscigenação se alarga ao político e às artes, à técnica e às práticas sociais. No ensaio «Reparações do mundo, potência do inesperado», escreve: «O meu propósito é o de reafirmar que a existência da arte, no seu fazer e no seu envio aos outros, não está, não pode estar, por condição, dependente do seu enclausuramento no mundo da arte […] O actual tipo de relação entre “mundo da arte” e capital está bem evidente na aliança de negócios de arte e corrupção que são actualmente notícia-espectáculo. Esse é um desígnio político-policial: a política que manipula aquilo que designa como arte para proveito económico apresenta a arte como um mundo coeso e valioso ao qual é preciso que os indivíduos se rendam; essa política tem soluções para tudo, que supõem sempre o “desenhar”, como agora dizem, aquilo que reduz a vida ao interesse. Para promover a rendição, existem funcionários de muitos tipos» (p. 105).
O mito da coesão das actividades sociais e culturais é aqui objecto de agudas análises de Silvina Rodrigues Lopes. A coesão é uma integração de dispositivos e coações à performatividade. «A imposição de objectivos como medida e orientação do agir humano assemelha-se ao visar do caçador – concentração do esforço no cálculo da eficácia, redução do Eu a um sujeito identificado como vontade de dominação, separado do conjunto dos outros enquanto possíveis alvos, mas a ele ligados perante o inimigo comum («o homem lobo do homem» e o homem como elemento de conjuntos funcionais, que são os órgãos do Leviathan mecânico).» (p. 48).
Ensaios essenciais que se libertaram das coesões disciplinares.
JLR