O sem-ofício dos livros

Ou o problema natalício dos livros que são outra coisa

 

Um dia, há muitos anos, participei numa conversa com Al Berto sobre livros. O Al Berto era um poeta maravilhoso e certamente terá depreendido que a sua presença era requerida para que falasse de livros de poesia. Também fui convidado, mas o meu ofício era muito mais incerto: eu gostava de livros e também escrevia umas coisas inconstantes. A incerteza em torno do que se escrevia era para mim, já então, uma indicação do interesse dos textos. Mais ainda, era uma indicação de que aquele objecto do meu interesse – um certo livro – teria misteriosamente escapado às arrumações mercantis e textuais que lhe queriam impor, adquirindo assim uma viva própria. Já então me agradavam sumamente os livros incertos, que o podem ser por origem ou pelo seu percurso tumultuoso, tantas vezes vítimas da incúria dos profissionais do livro. Havia, contudo, uma forma de incúria que era fruto da paixão pelos livros e que se reflectia numa sábia desarrumação do espaço da livraria. Não era apenas a desarrumação: ao perderem-se, os livros tornavam-se noutro livro, faziam-se outra coisa, fosse pelo conteúdo, pela capa ou pela inadequação que manifestavam.

Essa era a razão por que me achava impedido de dar destaque a alguma categoria ou género de livro naquela conversa. Decidi, em vez disso, falar da localização dos livros nas livrarias, de como alguns livros parecem encontrar um recanto mais adequado ao seu carácter ou simplesmente ao seu bem-estar. Devo assinalar que esta conversa teve lugar há mais de vinte anos, quando Al Berto ainda estava vivo. Nesses anos ainda existiam livrarias com demasiados livros, com demasiados livros a chegar, demasiados livros amados pelo livreiro, demasiados livros que nunca chegavam a revelar o seu segredo. Nessas livrarias – que hoje já quase não existem – carregadas de semi-segredos, de abjecções e revelações, muitos destes livros eram relegados para as prateleiras inferiores ou para elas resvalavam sem que ninguém soubesse porquê. Foi essa a minha recomendação naquela conversa com Al Berto: todos nós, e particularmente os poetas, deveríamos prestar atenção às prateleiras mais obscuras das livrarias. A poesia corria um particular risco de aí ir parar: ao contrário do mito, nunca vendeu, mesmo no «país de poetas». Mas, decidido a contrariar a opinião geral, sublinhei que o posicionamento inferior desses livros não reflectia necessariamente uma qualidade ou um interesse inferiores. Acabei, portanto, por opinar que a boa condição física do frequentador de livrarias era uma condição indispensável para aceder às maiores descobertas bibliográficas. 


O Gato Vadio não é, de modo algum, uma dessas quase extintas livrarias onde se acumulam as mais inesperadas descobertas. Mas tem os seus recantos e luta por preservá-los, expandi-los e ajudá-los a terem uma vida própria. Não contando com os alfarrabistas, raras são hoje as livrarias que (se) permitem dar espaço à incerteza. Se forem às «livrarias» dos centros comerciais e das cadeias livreiras, não encontrarão um único livro inesperado, fora de circulação ou decididamente minoritário ou desdenhado. Mas aí encontrarão, de certeza, infindáveis livros irrelevantes, postiços e «úteis». Decidi, por isso, oferecer-vos aqui alguns «instantâneos» (como era uso dizer) das prateleiras do Gato. Estão, como podem ver, relativamente arrumadas, não são muitas (por enquanto), mas os livros que abrigam começam a desenvolver aquela vida própria que tem algo de inquietante e, contudo, profundamente satisfatório. Que essa vida própria seja alimentada por livros que estão agora a ser editados, sem que se saiba como estes editores o conseguem, é o sinal de que a cadeia de livros que são sempre (ou vêm a ser) outra coisa é mais longa do que pensávamos. A livraria do Gato é um espaço onde aquele que aí se desloca pensando num certo livro, acaba por descobrir – encontre-o ou não – que tem outra coisa nas mãos. Cá vos esperamos.

JLR