Novas dos admiráveis mundos tecnológicos

 

Andrea Mazzola, Transumano, Mon Amour, Mapa, 2020 
Lewis Mumford, Técnica e Civilização, Antígona, 2018


Novas dos admiráveis mundos tecnológicos

Uma das especificidades da Livraria do Gato Vadio reside na enfatização de temas incómodos, inconvenientes e geralmente silenciados pelas instituições e pela totalidade do espectro político. Acontece que um dos domínios para nós essenciais de entre aqueles que deparam geralmente com um silêncio incomodado é a crítica do papel político, ambiental e social da tecnologia. É essa a razão por que damos agora destaque a duas obras importantes que vêm, não colmatar a abissal ausência de livros essenciais em português, mas pelo menos ajudar-nos a sair da nulidade no que respeita à oferta de textos importantes sobre a tecnociência. Neste caso, combinam-se dois livros contrastantes entre si: por um lado, Técnica e Civilização, de Lewis Mumford, um grande clássico, fascinante pela data em que foi publicado (o texto inicial é de 1934, a que se juntam diversas revisões e acréscimos do autor) e também por algumas ilusões que podemos ler com proveito retrospectivo; por outro, Transumano, Mon Amour, um livro inédito de um autor italiano radicado em Portugal, Andrea Mazzola, agora editado graças à colaboração de diversos colectivos e associações que se juntaram ao Mapa.

Antes do mais, estes livros foram escritos em contracorrente. Fica o subscritor destas linhas sempre surpreendido quando, diante dos supostos discursos críticos que atravessam o nosso espaço público, se vem a perceber que há um domínio intocável diante do qual, subitamente, a crítica mais radical e ousada parece despoletar o seu tiro, emitindo ressalvas às considerações que até aí eram ousadas e começando a titubear vagas considerações sobre o génio humano e a inocência das máquinas exposta às más intenções de uns e de outros. Não é que estes autores em contracorrente ignorem as teses antropológicas sobre a vocação técnica dos homo sapiens ou não conheçam a historiografia comparada das técnicas adoptadas nas inúmeras culturas que já passaram pela Terra e a sua diversidade de usos e âmbitos. Simplesmente, eles insistem teimosamente em prestar atenção aos sinais mitológicos que provêm, não só dos usos e representações que a nossa cultura global atribui às técnicas que adopta, mas sobretudo aos programas sociais, políticos e culturais que estão nelas embebidos. Não há tarefa mais urgente para aqueles que querem verdadeiramente compreender o nosso tempo e resistir às suas tendências ditas «inelutáveis».

«Que espécie de homem surge da nossa técnica moderna?», pergunta Mumford no seu livro. Não sendo colocada na mesma perspectiva de Mazzola, que parte directamente das tecnologias de upgrading dos seres humanos, o livro de Mumford é suficientemente abrangente para compreender que as forças desencadeadas pela Revolução Industrial não atingem apenas o mundo e as outras espécies vivas, mas trabalham directamente a viabilidade do humano. Mas mesmo quando não o fazem, mesmo quando parecem limitar-se a destruir o mundo e a vida não humana, deixando as pessoas aparentemente incólumes, torna-se evidente que, a prazo, está a ser serrado o galho em que nos sentamos. E como o processo técnico é, sobretudo, uma complexa estrutura de remediações técnicas dos efeitos colaterais da técnica, será inevitável que a própria operatividade do sistema técnico necessite a dada altura da plena objectivação técnica do humano. «Antes de a máquina se ter entranhado na vida, a ordem era prerrogativa dos deuses e dos monarcas absolutos. […] Com o desenvolvimento das ciências e a inserção da máquina na vida prática, o domínio da ordem foi transferido dos governantes absolutos para o universo da natureza impessoal e para o grupo particular de artefactos e costumes a que chamamos máquina. A fórmula da intenção régia – «eu quero» – foi traduzida por «isto deve», nos termos causais da ciência» (Mumford, p. 340).

Passando ao Transumano, Mon Amour, verifica-se que muitas das possibilidades de controlo democrático das tecnologias que Mumford ainda aventava no seu texto como possíveis são agora obviamente inverosímeis. É pois de assinalar que, logo a abrir, Mazzola ponha de lado toda a ambiguidade quando escreve: «A evolução da neurotecnologia está fora do controlo das regulamentações, leis ou decisões políticas democráticas. A ciência académica deu lugar às inovações das indústrias, aos laboratórios e às startups» (Mazzola, p. 26). Esta mudança político-epistemológica dos estatutos e protocolos da ciência e da tecnologia, embora pouco discutida no livro, tem um papel decisivo no rompimento dos (poucos) limites ético-políticos que subsistiam no desenvolvimento das tecnologias.

Não estamos de acordo com a cronologia que Mazzola estabelece quando escreve que, se «até agora o desenvolvimento tecnológico estava voltado para o exterior, com o objectivo de controlar o ambiente circundante, hoje a sua direcção está apostada, sem mediações, para a nossa mente, memória, metabolismo, personalidade e descendência» (Mazzola, p. 20). Sem querermos diluir a importância das tecnologias hoje orientadas para a «ampliação» do humano, o futuro H+ que percorre o livro, diremos que o trabalho do transumanismo é também, em paralelo, o trabalho da hiperterra, do Mundo+. Esse será, certamente, um tópico para uma discussão frutuosa em torno do livro. O mais relevante é que o livro está cheio de informações, referências e reflexões da maior importância, entre as quais esta citação de Saint-Simon, que já no início do século XIX apontava para o ascendente industrialista das operações técnicas sobre aquelas políticas e sociais: «A sociedade moderna só tem um objectivo, a produção, a indústria» (Mazzola, p. 101).

A terminar, uma chamada de atenção para um capítulo do livro dedicado ao Groupe Oblomoff, um notável colectivo francês, crítico do papel da investigação científica na preparação da tirania tecnológica. São os «Oblomoff» que escrevem: «Não se trata de aproximar a ciência do cidadão, mas antes de quebrar a lógica do especialista, denunciar a mentira da neutralidade da investigação e impedir a ciência contemporânea de contribuir, no dia a dia, para a destruição do político, substituindo-o por uma questão técnica» (https://sciences-critiques.fr/pourquoi-il-ne-faut-pas-sauver-la-recherche-scientifique/).

Jorge Leandro Rosa