Novidades da Livraria: Vasco Santos (VS.), o editor & Badiou: errâncias da verdade entre S. Paulo e Trump


Vasco Santos (VS.), o editor

Se procurarem no google (inevitabilidade de época assarapantada) por «Vasco Santos» aparece-vos isto: «Vasco Santos é um árbitro de Portugal. Faz parte da Associação de Futebol do Porto. A sua profissão é estudante. É um árbitro de primeira categoria. Nascimento: 31 de agosto de 1976 (idade 44 anos)». Paira por instantes uma dúvida: será este o nosso homem? É que a personagem apresentada tem qualquer coisa do performer, do agente patafísico (embora mais provocado do que provocador) que se dedica a misturar as artes: um árbitro de primeira categoria que carrega a eterna profissão de estudante é certamente alguém decidido a sublimar criativamente os elementos da própria vida! Não era algo parecido o que fazia o já mítico editor da Fenda, a sua chancela anterior? Cada exemplar saído dessa casa transportava consigo a sublime sugestão anatómico-erótica que não podia passar despercebida a alguém que, como é sabido, se dedica também às práticas do dr. Sigmund Freud, com consultório aberto há muitos anos.

Não, decididamente não se trata do nosso Vasco Santos: em 1976, o nosso homem já arbitrava nos campeonatos da contracultura coimbrã. Faça-se então girar a página google como quem insta o adivinho a ir mais fundo. Muitas entradas depois, passadas as pornografias do videoárbitro ou a vandalização do prédio onde mora VS (o árbitro), passando por um Vasco Santos, professor de economia, e outro, candidato do MAS à Câmara de Barcelos (ah, o galo!) com o lenço palestiniano de rigor ao pescoço, chegamos a uma notícia solar (mas já a ficar enevoada) do jornal Sol: «Vasco Santos, psicanalista e editor, lê nas entrelinhas do estado de emergência que o coronavírus tem permitido uma oportunista intensificação da biopolítica, para controlar, vigiar e punir». Tremem-me as mãos. Sim, é inequivocamente o nosso VS – de Vasco Santos, Editor –, que acaba de entrar em toda a sua glória nas estantes do Gato!

A vs. é portanto a herdeira da Fenda, que começara por ser montada por Vasco Santos, Bicker e Júlio Henriques. À primeira vista nada o deixa perceber: o elegantíssimo desenho gráfico que João Bicker deu à vs. pouco deixa entrever das provocações gráficas da Fenda – revista e editora. Mas não era já Bicker que desenhava a Fenda? Que se passou entretanto? Vasco Santos dixit: «vs. é uma editora pós-Fenda, unipessoal, a Fenda era uma sociedade, não me posso permitir uma aventura tão vertiginosa como foi a Fenda. A vs. é uma coisa modesta, nómada, porque quero ir a vários sítios, géneros, autores, universos». Não somos dos que pensam que a modéstia editorial tem de rimar sempre com livros de aspecto modesto ou bizarro. Não tem, efectivamente. Mas, independentemente da excelência gráfica aqui patente, por que razão vivemos numa sociedade onde as vertigens só são lidas se estiverem num embrulho que parece aparar-lhes a queda?


É preciso abrir os livros e ler o que lá está para se perceber que o editor Vasco Santos, redivivo e fiel aos seus autores, prossegue o único trabalho que pode emergir inteiro e discursivo do gabinete analítico. Saudemos portanto a vs., o seu embrulho à la page e o regresso das suas poluições interiores. E, sobretudo, o Gato revê-se nas suas palavras da entrevista que deu aquando da apresentação da editora: «Uma das coisas que mais me choca na sociedade de hoje é a diminuição da amizade, que é uma coisa que já vem do século XVI, do início da modernidade e o culto do individualidade. Estamos num tempo em cada um guarda ciosamente o que é seu, veja as questões do copyright. O Guy Debord que foi um fervoroso antagonista dos direitos de autor hoje pertence a uma editora que guarda ciosamente os direitos da sua obra».

Recebemos 17 livros dos já editados pela vs. nestes dois anos de actividade. Destaques óbvios para os Aforismos, de Karl Kraus, o Tratado de Funambulismo, de Philippe Petit, O Teatro e a Crueldade, de Artaud ou A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer, de Stig Dagerman. O outro destaque é a entrada na edição portuguesa de Alain Badiou, com dois livros editados pela vs.: Trump e S. Paulo. A observar numa nota à parte.

 

Badiou: errâncias da verdade entre S. Paulo e Trump

A verdade anda com má fama nos círculos teóricos. Alain Badiou escreveu nos anos 1980 um livro (não traduzido) que, sendo sobre o ser, não lhe reúne a verdade mas antes o acontecimento. L’Être et l'événement não foi certamente o primeiro livro a fazê-lo (presença de Heidegger, manifestamente), mas foi o que se propôs dizer-nos que há aqui matemática e poesia. Para Badiou, o acontecimento é sempre localizável, está sempre num dado ponto da situação. A verdade em si mesma, essa, pode permitir-se a indiferença ao estado da (nossa) situação. Não sendo possível resumir o pensamento de Badiou em seis linhas, basta aqui dizer que ele o tem vindo a enunciar a partir de uma recusa da indiferença, o que o leva a capturar na sua rede filosófica os «militantes» mais diversos.

Este debate ontológico tem servido a Badiou para ir escrevendo uma já longa série de livros sobre a nossa situação. Para tal convoca diversas personagens que a afectam ou dela dão sinal. O mais relevante é que essas personagens não têm de ser nossas contemporâneas, no sentido temporal do termo: elas são contemporâneas no sentido em que afectam os critérios de verdade em que nos movemos. Mas podem afectá-los dos modos radicalmente mais diversos, como nos casos de São Paulo e de Trump. A vs. editou agora dois livros sobre esses actores da nossa situação -- São Paulo, A Fundação do Universalismo (1997) e Trump (2020) --, cujas diferenças residem desde logo na substância de que são feitos: o São Paulo é um livro com densidade filosófica e histórica em torno do homem que transportou o Acontecimento-Cristo. Trump, por seu turno, é uma compilação de conferências em universidades norte-americanas. Todas são dedicadas ao actor que ocupa actualmente a Casa Branca e que se faz ele próprio acontecimento para que o que acontece não seja aparente. Livro sem maior pretensão, mas que diz por vezes coisas notáveis: «Uma ideia que chegue a afirmar que devemos sair não apenas do trumpismo, não apenas do capitalismo moderno, mas da enorme época da existência do humanos, aberta, não há muitos milénios, pela revolução neolítica» (p. 66).

JLR