Chegada do Vendaval ( e homenagem a Bernard Stiegler)

 

Eis que chegam múltiplos vendavais ao Gato. A Vendaval é uma editora portuguesa que semeia ventos. É tempo destes livros e do seu sopro.

O vendaval que nos atinge (e que transportamos) explica-se, melhor do que o poderíamos fazer, pelas palavras de Derrida: «A minha escolha é, não a vida (em sentido biológico) a qualquer preço, mas antes a maior intensidade de vida possível em cada instante». O leitor abre cada um dos livros publicados por esta editora e percebe a instabilidade que aí perpassa, a inquietação, o fluxo do que é dito e do que se percebe nesse dizer. Livros tremendos, livros tremeluzentes.

Esta agitação – lírica e inteligente – é antes de mais a da própria figura editorial destes livros: Silvina Rodrigues Lopes. Como autora, encontramos aqui quase tudo o que ela tem vindo a publicar do seu ensaísmo fulgurante: de A Literatura, Defesa do Atrito a Sobretudo as Vozes. A voz de Silvina – a da autora mas também a da editora – tem uma modulação inconfundível e é participante de um trânsito arcaico e contudo contemporâneo. Como ela própria escreveu, trata-se da «participação numa língua primordial», da «impessoalidade de um agir». Devemos a Silvina um ensaísmo que, longe de se fixar no objecto literário, o abre ao que não caberá nunca na literatura, ao que nela se deixa apenas adivinhar e mesmo ao que a evita. É um exercício de des-confinamento, de «des-possessão», que parece comunicar-se aos outros editores da casa.

Para além desta inquietação inerente a estes objectos, há uma outra que podemos dizer temporal: as novidades da Vendaval têm sido esparsas. É contudo impossível ler qualquer livro da Vendaval com o sentimento de estar diante de um objecto editorial pretérito. Ao seu ritmo, a Vendaval nunca fecha portas aos ventos. Aguardamos, portanto, novidades editoriais a todo o instante. Cada um destes livros é constantemente novo e inédito.

«Novo» também é, e por inerência do tempo do pensamento, o livro de Bernard Stiegler que a Vendaval publicou há alguns anos e que agora entra no Gato: Descrença e Descrédito. A decadência das Democracias Industriais. A ver pelos artigos que a imprensa «culta» dedicou ao autor (género: «O filósofo que se fez na prisão»), o livro parece ter ficado nos armazéns e não ter tido ainda a recepção merecida. É o primeiro volume de uma trilogia. Por enquanto só temos dela este volume, pelo que continuamos a aguardar as traduções dos outros. E, sobretudo, aguardamos a tradução dessoutra trilogia fundadora, A Técnica e o Tempo, provavelmente o mais importante estudo filosófico sobre a técnica escrito depois de Heidegger e Simondon. Mas este Descrença e Descrédito, que lhe é posterior, é já o confronto desse pensamento da técnica com as feridas, as ausências e os gritos que vêm dela e atingem de alto a baixo as nossas vidas. É, portanto, a nosso ver, um dos livros mais importantes publicados em português desde o início do século! É, certamente, um livro sobre o capitalismo, mas não sobre esse capitalismo de opereta que alguns dos seus «opositores» encenam: é antes sobre o âmago do capitalismo, sobre a «racionalidade da confiança» que nele trabalha e destrói toda a crença e toda a relação com o incalculável, única fonte de todos os vendavais do pensamento, de toda a criação de uma indeterminação vital para a sustentação do futuro.

Parece ser precisamente por lhe ter faltado a incalculabilidade do seu futuro que Stiegler se deu a morte no passado dia 5 de Agosto. Mas na verdade não sabemos. Sabemos apenas que este seu gesto nos deixou diante do nosso próprio saber-viver.



Jorge Leandro Rosa





LISTA DOS LIVROS DISPONÍVEIS DA VENDAVAL:

AA.VV., Herman Melville: A vontade, as palavras, a acção

Maurice Blanchot, A Besta de Lascaux

Patrícia San-Payo, Blanchot, A Possibilidade da Literatura

Emerson, A Confiança em Si

Bernard Stiegler, Descrença e Descrédito

Carlos Vidal, Deus e Caravaggio

Vidal, Imagens sem Disciplina

Hölderlin, Pelo Infinito

Hölderlin, Lógica Poética

Georg Büchner, Lenz

Eduardo Pellejero, A Postulação da Realidade

Philippe Lacoue-Labarthe, Duas Paixões (Artaud, Pasolini)

Lacoue-Labarthe, Textos sobre Hölderlin

Jean-Luc Nancy, Resistência da Poesia

Maria Carolina Fenati, Leitura de «Geografia de Rebeldes»

João Pedro Cachopo, Verdade e Enigma

Silvina Rodrigues Lopes, A Anomalia Poética

S. R. Lopes, Sobretudo as Vozes

S. R. Lopes, Exercícios de Aproximação

Maria Filomena Molder, Símbolo, Analogia e Afinidade

Sabrina Sedlmayer, Pessoa e Borges

Fernando Gil, Paisagens dos Confins