Dois dias… para criar uma nova língua
Sonhei com uma editora que ambicionasse uma nova língua para os seus livros. Uma nova língua é mais do que novos pensamentos, novas discussões destes, novos textos e metatextos. Uma nova língua não significa aqui uma língua esotérica, mas uma língua que se faça subitamente compreensível para todos, embora essa já não seja a compreensão que nos aflorava ao longo dos dias em que acreditávamos viver. Uma nova língua pega em nós, vivos quase mortos, primeiro de forma quase imperceptível, depois com brusquidões que será melhor não contrariar. Nous sommes en voyage…Essa vida de «dois dias» parece ter encontrado agora novos horizontes com esta experiência editorial. Vimo-la chegar há quase quatro anos com A Grande Bebedeira de Daumal, narrativa de experiências de si que não iludem que é preciso queimar muito do que se diz por aí: «Os livros ardem muito mal, muito lentamente, com mais cinzas do que chamas. É preciso folheá-los, pela última vez, com a ponta do atiçador, página a página, no seio do fogo; senão, carbonizar-se-iam à superfície, para depois se apagarem e abafarem as chamas. Além disso, produzem uma massa de cinzas estratificadas que é preciso pulverizar, sem ponta de piedade pelos escritos que amámos, enquanto estes nos passam diante dos olhos...» (trad. de Lurdes Júdice).
A escrita-vida de René Daumal é uma das mais incandescentes que conhecemos. É por isso notável que a Dois Dias nos dê também O Contra-Céu, grande ciclo de uma poética do risco vital, longamente trabalhada nas aventuras em radicalização surreal do Grande Jogo.
Mas sendo certo que podemos falar de uma autêntica «redescoberta» em português de René Daumal, já o mesmo não parece suceder com Witold Gombrowicz, que foi sendo publicado por esta e por aquela editora nos últimos trinta anos, como quem presta tributo a famas literárias quase ignotas. Bakakai é um livro de contos do autor de Pornografia, quase todos eles escritos no seu período polaco. Todos menos o que abre o livro, datado de 1946, porque o tempo sempre foi, para Gombrowicz, uma ficção inquietante que é necessário colocar sob vigilância, não vá ele fazer das suas. Um grande hipocondríaco temporal. Recorde-se que Gombrowicz foi certamente o autor europeu que melhor passou a perna à História quando, num gesto imprevisto, embarcou em 1939 no primeiro navio que encontrou a sair do porto, vendo-se, algumas semanas mais tarde, em Buenos Aires. Lá ficará mais de vinte anos, sempre a colocar o futuro para trás das costas.
São portanto belos, irónicos e negros os segredos da literatura europeia que a Dois Dias vai disseminando por esta terra, que certamente não os merece. Embora cada vez mais miserável em rebeliões, algumas foram acontecendo neste país sob a forma de erupções de papel: daí a Dois Dias ter publicado o livro-arquivador de fascículos Páginas Inquietas. É um projecto de coleccionista melancólico. (Há alguma coisa mais melancólica do que a colecção de insubmissões?) Este projecto partilha com as outras edições da Dois Dias uma elaboração plástica quase sempre presente na sua génese: tratou-se, inicialmente, de uma exposição de Mário Moura e Susana Gaudêncio no Espaço Mira, em 2016. É um belo repositório, e com resultados muito interessantes, mas também revela o alçapão novamente historicizado em que o espaço artístico constrói hoje o arquivo das ilusões vitais. Mas a Dois Dias tem os instrumentos linguísticos e espirituais para deter essa voragem arquivística: basta-lhe, para isso, recorrer ao seu próprio Contra-Céu: «E tu, tu que já não querias voltar a nascer, / regressa às casas de sofrimento, / regressa aos coros subterrâneos debaixo / das lajes / regressa à CIDADE sem céu, / refaz o teu caminho no sentido inverso.»Jorge Leandro Rosa