Revista A Ideia, nºs 87-89, Inverno de 2019-20 (datada do Outono 2019). Editor e director: António Cândido Franco
O Gato Vadio acaba de receber mais um número d’A Ideia, o triplo 87/88/89, o qual, devido a vicissitudes de todos conhecidas, só agora chega às nossas estantes. A revista vai no seu quadragésimo quinto ano de metamorfose criativa.
Ainda a sair da adolescência, o subscritor destas linhas publicou aí umas notas afectivas sobre anarquistas inusitados, mas que considera dignos de firme crédito libertário – William Blake, Gary Snyder e mesmo, sob outra perspectiva, Ernst Jünger –, e embora alimentasse então a secreta ambição de dar à luz n’A Ideia alguma coisa sobre Kropotkine e Tolstoi, só muitos anos depois pôde escrever sobre o funeral de Kropotkine e o derradeiro encontro dos companheiros do autor da Conquista do Pão com os tolstoianos. Evoco estes tentames e os nomes a eles associados porque são reveladores de uma dupla liberdade que sempre existiu n’A Ideia, tanto em fases anteriores como nesta que se edita sob o cuidado de António Cândido Franco: a liberdade de se metamorfosear e de multiplicar a ideia, não em vista a uma adaptação aos tempos, mas para melhor deles sair.
Depois de uma série de números onde reemergiram tantos caminhos perdidos do surrealismo português, chegamos a um número ainda percorrido por esse fluxo que abre com a figura de Breton nos 100 anos da descoberta da escrita automática. A esse propósito, A Ideia realizou um inquérito internacional onde se perguntava pelo «papel que esta descoberta (a escrita automática) tem hoje na sua criação e na sua vida». Chegaram respostas de um Alberto Pimenta a um Michael Löwy, de um Allan Graubard a um Natan Schäfer, entre muitos outros. Se nada mais fosse matéria ardente neste número, esta bastaria para fazer dela a publicação de maior inactualidade do Ano da Graça de 2019 (já saída em 2020). A aproximação à matéria-prima da linguagem, em sentido alquímico, e na citação que Sérgio Lima faz de Breton, permite compreender que «a enunciação está na origem de tudo». Aliada à descrição dos sonhos e ao collage, a escrita automática participou nessa «combustão das imagens» que ardem hoje mais vivamente do que nunca, mas também mais inconscientes do que alguma vez o foram, ocultadas que estão agora por um campo da criação tomado por imagens e afirmações auto-publicitárias. A resposta de Ron Sakolsky é, a este propósito, preciosa: «O papel do automatismo psíquico tem no meu processo criativo pessoal 3 aspectos móveis: é às vezes central (na minha actividade como poeta), às vezes acedido na visão periférica […] e às vezes experimentado como uma recordação flutuante de um estado de ligação dum sonho oceânico […]. Quando a minha vida está mais em acordo com o livre jogo destes 3 aspectos do automatismo, aquilo que poderia parecer à superfície ser um simples dia comum contém a ofuscante possibilidade do encontro ao virar da esquina com uma inesperada exaltação, como quando o duende se manifesta e apaixonadamente me convida a abandonar as minhas constrições e a dançar» (tradução nossa).
Destaque ainda para o texto «Fluidos, berlindes, médiuns, bolas de cristal & carvões», em que António Cândido Franco dá voz transbiográfica à experiência que, em 1933, André Breton terá tido do automatismo psíquico na sua manifestação mais lata de «mensagem automática», aqui já não restringida à escrita. Atravessando uma genealogia do automatismo mental, o texto corrobora aquelas posições – e desde logo a do próprio Breton – que negam que o surrealismo se limite a ser um movimento literário e artístico, ele que parece dirigir-se para uma maior liberdade de consciência em todos os domínios. «Porventura é até possível que o automatismo […] se esteja a tornar a chave, a questão decisiva numa época em que o projecto humano parece estar a ser substituído por uma nova etapa da inteligência, cuja mais sinistra característica – a artificialidade mesma com que está a nascer – é ter sido esvaziada de conteúdo psíquico profundo, reduzida que foi a um compartimento de superfície, o super-ego, onde apenas a obediência à norma programada ditará a lei de multidões passivas e uniformes».
Passada esta primeira parte da revista, as riquezas sucedem-se em sequência não linear ao longo das páginas: excertos das Vidas Imaginárias de Schwob, um vislumbre da mnemotecnia em Castilho, aqui um cego «surrealizado», um texto de Anselm Jappe e, a propósito de imaginação social, um largo conjunto de textos e documentos a propósito do centenário do jornal A Batalha. Destaque também para um texto de Miguel Real sobre duas figuras anarquistas em contraponto com o anarco-sindicalismo: Ângelo Jorge e António Gonçalves Correia, que é provavelmente o nosso mais singular tolstoiano (e de Tolstoi o número inclui o conto A terra de que precisa um homem, em versão de Agostinho da Silva). A nós, que nos revemos no anarquismo de inspiração tolstoiana, muito nos apraz o espaço que A Ideia tem vindo a dar a esta corrente, e que tão arredada andava das publicações libertárias em português. Logo a seguir, e para nossa alegria, dado que já o havíamos sugerido a ACF, aparece uma revisitação de Proudhon pela mão de Teresa Xavier Fernandes: «Pierre-Joseph Proudhon: um (pós) anarquista avant la lettre». Bom material para continuar a reinventar o anarquismo a partir das suas múltiplas tradições.
Por fim, a secção Leituras & Notas, que encerra sempre a revista, e onde se encontram tantas preciosidades (embora seja preciso procurá-las com persistência, dada a cerrada paginação dos textos, que não parece ser-lhes a mais favorável), reserva-nos neste número alguns artigos importantes: desde logo, o texto de Jean-Pierre Tertrais sobre o tecno-totalitarismo e a herança crítica de Jacques Ellul, depois, o estudo de António Baião sobre António Sérgio e os integralistas e ainda, entre outros, um texto de João Freire sobre o suplemento literário d’A Batalha. Fecho esta nota assinalando a importante «Carta Aberta» do mesmo João Freire, escrita em resposta às muitas reacções desfavoráveis ao seu Um Projecto Libertário, sereno e racional. Não cabe aqui emitir uma posição sobre essa polémica: importará mais lembrar que João Freire, o fundador d’A Ideia, teve, no último meio século, um papel incontornável no movimento anarquista, mesmo quando a sua reflexão o levou por caminhos que surpreenderam alguns de nós. Mas a anarquia é sempre, por definição, surpreendente.
Jorge Leandro Rosa