“A absoluta falta ausência do pensamento utópico no mundo actual parece ser a razão principal pela qual a ideologia dominante conseguiu criar o presente contínuo em que vivemos, um presente no qual não há espaço possível para qualquer acto de imaginação que pretenda superar estes muros”,Julio Monteverde
“Estamos numa fábrica de neurastenias e, se este tempo tem uma verdade, é a de ninguém mais tolerar ninguém”, João Antônio
“Pai, pinta o mundo no meu corpo”. (Canto indígena de Dakota do Sul)
atravessar o impasse – atacar a realidade
IV Jornadas da Soda Cáustica
(Programa abaixo)
Já não temos pressa nenhuma, apenas a urgência de sempre. A sobrevivência é impossível há tanto tempo que só a vida – o nervo e a boca, o grito e o beijo – importa. Só o corpo pinta o mundo. Mundo e corpo sem reclusão, procurando o comum, a criação e a expansão do que é livre.
O nosso olhar não é um drone mapea-dor, mas chega para observar o mal-estar permanente que se instalou em todas as latitudes, transversal a diferentes culturas e classes sociais. Mal-estar tão catastrófico como os fenómenos naturais extremos que assolam a Terra, um pouco por toda a parte. Essa neurastenia global vem de par com uma perene vontade de mudança que tem estado na origem de levantamentos populares, do Brasil ao Gamonal, da Venezuela à Ucrânia, da Bósnia a Gezi passando por Atenas. Levantamentos profundamente sui generis e que reúnem forças e energias que se contradizem em encruzilhadas políticas de difícil previsão e actuação... No entanto, não é preciso ser pós-moderno (cruz credo!) para perceber que a canga autoritária capitalismo-parlamentarismo apenas serve à casta de amos e senhores, serviçais e políticos de carreira, e que o beco sem saída não mora só aqui, na nossa carteira, na nossa empregabilidade, no nosso quarto, nos nossos amigos, nos nossos vizinhos. O beco sem saída foi globalizado e está por todo o lado. Graças à realização total da utopia capitalista o desengonço é glocal. Ironia das dialécticas (alomórficas) da História, o culminar deste processo de materialização do projecto liberal e da utopia capitalista coincide com o estrondoso fracasso do capitalismo de rosto humano, pondo a nu que a lógica do mercantilismo é sempre canibal. Quanto à espécie que nos acossa há alguns séculos, não entregamos a nossa face, fintamos o terror que a mega-máquina espalha com a tranquila impaciência de transformar o que é de todo@s, em lugares mais justos e poéticos. Dessa parafernália do Poder, nãolhe queremos o veneno, mas somos hostis à mentira do espírito do tempo e ao canibalismo como sistema de vida-morte da nomenklatura.
Por não haver solução não quer dizer que não haja problema, se nos permitem desconstruir o paradigma de Duchamp. Mas a premissa “não haver solução” é já um tirar desforço da ressaca dos vencidos da História. Por contraponto, remete ainda para a solução, o amanhã, a grande aurora. Perspectiva que não fez o luto do romantismo ideológico nem bateu em latas, nem rompeu aos saltos e aos pinotes. Não canta “é p'rá amanhã [?], bem podia ser para hoje”, como uma mais acertada variação... “Não há solução” é, o mais das vezes, desculpa esfarrapada, uma injunção que bebe dos resíduos tóxicos do tempoantropofágico e que justifica a eito o deixa-andar. A alienação pode até converter-se em motivo de piada (somos bem-humorad@s) e de discórdia. É certo que podemos desligar-nos da realidade, podemos não querer nomear o que tem nome, por angústia, por fastio, por falta de genica, porque temos os nossos tarecos, o nosso drama em gente. Mas o que é a angústia, o fastio, a falta de genica e o nosso drama em gente senão (também) uma pena capital? Será a resposta de fuga ao beco a única possível, e a mais legítima? E depois, quem conquista, de facto, a sua pax, e porquê, com a estratégia da fuga? E que pax é essa, quando à volta tudo arde? O pensamento selvagem será sempre mais criativo e imprevisível que o faz de conta que os muros não existem. As Jornadas, à sua maneira deslambida, amadora e em pândega geral, são também um apelo. (Isto não é um press release mas uma massagem real).
Sobre Portugal em particular, é um tema menor, porque as fronteiras a romper urgem por outra lonjura e os laços a criar devem invadir o que foge à conjura dos Estados-nação. Ainda assim, continua o país cabisbaixo e tragicómico (se bem que com salitre, pão,poesia e dádiva). A esquerda tanto rebarba na vigília eterna do comité central como se pretende livrar do comunismo rupestre através do deserto Livre de ideias, num momento em que a sociedade já renunciou até ao kitsch da maniftite aguda, e quando o fascismo mata por engano no Meco.
Mas o imprevisível e luminoso sucedeu na macro-política portuguesa com o exemplo da luta dos estivadores. Congratulamo-nos com as vitórias concretas e históricas que puseram um travão exemplar à dinâmica geral do recente neo-roubo dos trabalhadores, também conhecido por políticas austeritárias. De repente, percebemos que se o sindicalismo em geral se auto-organizasse e resistisse da forma como fizeram os estivadores do porto de Lisboa – assente na democracia directa e na internacionalização da luta –, se abriria outra luz sobre a profundidade do que está em jogo, além de que o empresariato e o poder só sobreviveriam com o tráfico de Putines e Obamas. Não menos luminescente, mas na sombra do anonimato da micro-política, é a actividade que une várias pessoas a diferentes campos da realidade e que já superaram tanto o complexo lusitano para o suicídio colectivo, quanto a administração da proletarização, como a Assembleia Popular de Algés (presente nas Jornadas), as redes participativas ligadas à ecologia ou o jornal Mapa, para citar apenas três exemplos.
A Soda Cáustica não passa de um fragmento de qualquer coisa que se pôs ao caminho. Continua sem saber aonde vai parar, sem controlar o seu devir. É atemática, porque ter um tema já seria um espartilhamento, um garrote. A realidade, não é de mais lembrar, não é um tema mas um campo de forças. Desgarrad@s e pantomineir@s desde o começo, mergulhamos a pique nesse campo de forças porque sabemos que a imaginação não conhece muros, e melhor do que isto não nos propomos fazer. Façam o que fizerem do nosso lero-lero não ficamos a fazer beicinho, muito menos somos de azedar, “soda cáustica” é truque de marketing, é pós-punk-chula, não é por rufianismo, era o que mais faltava sermos o “sector esquerdo”, só não gostamos de tapar o sol com a peneira. Entrevadinhos da visão é que tenham lá santa paciência, passamos bem sem oftalmologista e quem não gosta não janta, mas fantasia e embromanço só nos leva a ver os outros a apanhar pantufada enquanto nos pomos ao fresco. Livrem-nos de chutar para canto, de queimar vidas para chegar aos descontos e desta queda lusitana (arre chiça!) para o banho-maria. Mas vir'ó-disco que está na horinha de voltar a página... porque há muita gente que já arregaçou as mangas e largou o fado (menos a Mísia, felizmente). É isso que importa. Múltiplos e necessários caminhos se abrem para alcançar o comum. Por aqui, já começámos a errar. Desancados e com algumas cáries porque a noite é funda e comprida. Mas vamos. Atravessar a impotência é estarmos cada vez mais juntos. Desse nó, vai-se tecendo o comum. As Jornadas da Soda Cáustica podem e desejam isso. Voltamos, estamos. Nãoapareçam: venham e espanquem-nos com a vossa alegria e vontade de mudança.
a S o d a C á u s t i c a
Programa – MARÇO 2014
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