A Sétima Flauta




A SÉTIMA FLAUTA 

Flauta de Luz, nº 7, Abril de 2020. Editor e coordenador: Júlio Henriques

Acaba de sair – e contamos tê-lo já na reabertura da livraria do Gato Vadio – o sétimo número da Flauta de Luz. Cremos estar diante daquela que é hoje a mais significativa revista contracultural editada em Portugal. Para definir contracultura recorreremos a duas ideias: a primeira diz-nos que é difícil encontrar uma cultura viva num conjunto de referências limitadas a um espaço linguístico e geográfico homogéneo. A segunda afirma que a experiência cultural só pode ser uma experiência viva se, de alguma forma, se tornar experiência inclassificável, referência que baralha a topografia e festa que rasga a nossa forma de vida.

No seu sentido contracultural, a cultura é aquilo que nos conduz ao estado de máxima abertura a todos os seres, o estado mais profundo no ritual de iniciação a que o leitor da Flauta se presta. Num tempo de devoções pandémicas, quando os Estados e os poderosos mais se afadigam em torno da preparação, da prevenção e da logística, a Flauta de Luz esforça-se por atingir um estado de profunda impreparação: não tem programa nem procura a cientificidade, não é escrita com um olho na história do pensamento e não acredita que a civilização saiba contar a sua própria história. Reactiva a todos os programas direccionados que se avizinham, a revista deixa-se tomar pela poesia, aqui bem descrita por Dulce Pascoal, a propósito d’A Magia de Alberto Pimenta: «O discurso poético não se constrói em função de nenhum receptor, tem-nos todos implícitos» (p. 252).

Mas se a recepção aberta pela Flauta é indiscriminada, as vozes poéticas que convoca são algumas das mais historicamente discriminadas. É o caso da magnífica e essencial «Para uma Antologia da Poesia Ameríndia Contemporânea», que tem vindo a ser reunida desde o primeiro número por Fernando Gonçalves e Júlio Henriques. Se a poesia dos índios combina xamanismo e etnocídio, oralidade e escrita do branco, tudo o que aparece na revista parece revisitado por essa dolorosa resistência dos últimos ouvintes da terra. Mesmo os textos mais explicitamente políticos, como os de Corsino Vela, Raoul Vaneigem, Charles Reeve (Jorge Valadas) ou David Watson, entre outros, ganham aqui altitude no seu sobrevoo da terra por todo o lado ameaçada. Podemos encontrar a mesma altitude nas fotografias de José Reis, vindas até nós nas figuras mais reais e contemporâneas já vistas em Portugal. E o Coronavírus – hoje o epígono dos grandes confinadores da experiência – conta nestas páginas, para além de diversos artigos, com uma nota do editor Vasco Santos, onde este lembra que a carga viral dos (seus) autores promete as mais belas experiências de contaminação.

Não se pense, contudo, que a Flauta, se perde nalguma estética aérea dos mundos perdidos. Tal como não se perde na memorabilia com que se entretêm os revolucionários reformados. Como escreve Viveiros de Castro a abrir o número, trata-se, afinal, de «voltar à Terra como lugar do qual depende toda a autonomia política, económica e existencial» (p. 3).

JLR