Mike Leigh e o tumulto da normalidade nos subúrbios de Londres
Ao longo dos anos, Mike Leigh tem feito cinema nos subúrbios e entranhas da Londres onde hoje se acende um rastilho de cólera. O seus filmes retratam esse caldeirão anónimo das classes trabalhadoras em Inglaterra, trazendo à luz a ilusão de prosperidade de um país e de uma classe operária, ela própria iludida, talvez por estar mais próxima da concentração de riqueza de um reino singularmente exímio na técnica de pilhagem, talvez por ter sido das primeiras classes operárias na Europa a viver o dia-a-dia da sofisticada trapaça da sociedade feliz do truste liberal, que teve no ministério do Reino a vanguarda do marketing europeu. Mas o realizador filma, e bem – não apenas num sentido estético, ó esteticistas e calistas do raio que vos parta!!!! –, a violência da normalidade laboral, a inércia destrutiva de vidas quotidianas constrangidas a viverem o pesadelo da sociedade liberal, o desencanto dos espíritos inconformados com o rumo de um sistema económico opressivo.
Mas, quase sempre, o nosso olhar é conservador, isto é, está com o olhar da massa, do público, da maioria, está com o olhar que pode, o olhar que tem poder para orquestrar isso que não existindo, constrói o olhar de todos, a massa, o público, a maioria. E esse olhar, olha e vê o perigo na excepção e não na norma; atrai-lhe e significa a espectacularização da violência, ao mesmo tempo que absorve como uma esponja a violência real do dia-a-dia, esponja que espreme para esquecer e voltar a absorver.
Dito de outra forma, todos temos muito a dizer sobre uma dezena de tumultos excepcionais que grassam em Inglaterra; quase nada tivemos a dizer sobre uma dezena de décadas de vidas tumultuadas pela normalidade de uma lógica social, política e económica. Todos – quase, quase todos – chamamos pilhagem a um bando que subtrai 5 pares de calças, 3 telemóveis, 1 mochila, 1 caixa de Chips; quase todos, teimamos em olhar para o “de Cameron”, com uma dose de auto-condescendência, desviando para canto o ignóbil e inquantificável saque – humano, ecológico e económico – em que se sustenta a lógica capitalista. Essa lógica que, de Cameron em Cameron, faz de um mundo que destrói, um filme com múltiplos e intermináveis happy-ends, filtrando com mestria o nosso olhar.
Estes que hoje saqueiam lojas, e incendeiam esquadras e edifícios, são filhos dessa classe operária retratada por Mike Leigh nos seus filmes. Sem querermos cair no lugar-comum, estes jovens não parecem fazer parte de uma geração tão comum, que nasceu nesse caldo pós-ilusão de emancipação operária: a geração do cinismo (além daquela, mais feliz, que vem a banhos ao Algarve para contrair o seu pack de bem-estar social, lambuzando-se no ketchup e nos hamburgers que mandam embalar aos turcos, portugueses, polacos e cingaleses), aquela que gere, sem tacos de baseball, o descalabro social e humano da Europa.
Se estes tumultos erráticos não se traduzem em discursos e manifestos políticos, não quer dizer que sejam apolíticos. 16 mil polícias não são mobilizados para travar a excepcionalidade de uma dezena de bandos de 200 jovens: são mobilizados para que a norma não desperte. Não nos interessa condescender com a excepção, mas perturba-nos que a norma continue a estiolar.
Ciclo Mike Leigh
Programa:
Naked, Mike Leigh
Filme, 1993
Quinta-feira, 11 de Agosto, 22h
Entrada Livre
High Hopes, Mike Leigh
Filme, 1988
Sábado, 13 de Agosto, 22h
Vera Drake, Mike Leigh
Filme, 1996
Domingo, 14 de Agosto, 18h
Entrada Livre