Declaração de base – Abril Maio 2011
“Nem um gesto de paciência: o sonho ao nível de todos os perigos”, António José Forte
Trazemos connosco a vontade de construir outro mundo, onde a emancipação, a autonomia colectiva, a alegria de viver e o sentido crítico, se transformem numa aprendizagem feita a partir da participação livre, numa base horizontal de decisão que a todos pertence e que se nutre da solidariedade e da autonomia.
Se isto não bastar como princípio, temos ainda um rumo: queremos estar onde ainda se sonha. Sonhar é pensar além do capitalismo, é renunciar a pensar com ele, é não nos rendermos ao imaginário miserável que o capitalismo – e as suas lógicas de poder – vende, exporta, expande e coloniza, do Porto a Adis Abeba, do Cairo a Nova Iorque.
Não temos outro exemplo: transformar a nossa vida e fazer outro mundo depende das nossas mãos. Ninguém representa ninguém. Aqueles que abraçarem o mesmo caminho, não serão transformados em espectadores, da vida e do mundo. Ou, melhor, em espectadores da destruição da vida, da destruição do mundo, como se encarrega de fazer a política, a cultura e a media dominantes. De representatividade em representatividade, chegámos a esta fantasmagoria em que actores como o mercado, empresas de rating, especulação financeira, centros de decisão supra-estatais, submetem milhões e milhões de pessoas a uma vida pobre e degradante, no bolso, no corpo, no imaginário, na vida colectiva. A democracia que fazemos e queremos construir não está à venda.
Não se pode ser contra a precariedade, sem ser contra o capitalismo, enquanto perspectiva colectiva, social e política. Quando falamos hoje em capitalismo, não nos referimos apenas a um modelo económico, ele próprio assente em pressupostos precários – precário sob o ponto de vista humano, filosófico, político e económico. Pressupostos, ainda hoje, ridiculamente mistificados por esse conceito lúbrico do crescimento eterno…
O que é, então, de forma ampla o capitalismo no século XXI? E, para que serve?
Na sua essência, continua a sua senda inexorável: a lógica mais entranhada, culturalmente totalizante e implacável, de desviar a riqueza socialmente gerada por todos para o lucro de uma elite. Mas as estratégias camaleónicas do capitalismo e seus mecanismos romperam, no século que começou, com uma nova componente: além da extorsão de riqueza, por todos gerada para pagar e financiar o lucro privado, agora essa riqueza pública serve para pagar os prejuízos causados pela oligarquia financeira e especuladora, abrigada e protegida pela mole de interesses políticos reinantes, sempre pronta a vender a dignidade humana, a justiça social, a emancipação social, em troca da infâmia do poder que exercem.
Sem querermos tudo abarcar, desta forma de poder chamada capitalismo, resulta: crescente desigualdade social; perda de direitos sociais e laborais, conquistados no passado por processos de luta operária e social; neo-expansionismo à custa das sociedades mais pobres e/ou não-Ocidentais; novos conflitos bélicos, espoletados pela lógica fascizante do império económico-militar; caos ecológico e “escravização” dos recursos naturais; degradação e controlo do imaginário, através do embrutecimento e infantilização da indústria cultural, educativa e mediática; apologia acrítica da tecno-ciência, indispensável quer para o aprofundamento e expansão do mercantilismo, quer para a eficiência dos dispositivos de controlo dos poderes dominantes.
Por tudo isto, “só” somos contra a precariedade, na medida em que não queremos perspectivar a nossa vida e a vida de todos com base nas relações de poder estabelecidas pelo capitalismo: submissão ao poder hierárquico; competição e individualismo; império do patriarcado; domínio do poder autoritário nas organizações onde todos passam a maior parte da vida, da escola ao trabalho, como também nas formas político-oligárquicas que regulam a sociedade, e, cada vez mais, na própria rua e espaço público…
Não andará longe da verdade afirmar que, em nenhum momento histórico, a necessidade de uma transformação total das relações sociais foi tão evidente.
Há quem proteste contra a precariedade do emprego, nós protestamos contra a submissão do trabalho assalariado. Há quem proteste contra os falsos recibos verdes, nós protestamos contra qualquer base de relação exploratória. Resumindo, há quem proteste contra as condições em que se estabelece a submissão, há quem proteste contra a submissão.
A “geração à rasca” perderá o seu tempo e energia se andar a pisar ovos. É que o poder político dominante e a lógica cadavérica do capitalismo sabem fazer gemadas como ninguém.
A vida que desejamos, o pensamento livre e a acção autónoma a que nos propomos, estão bem acima da mínima submissão precária.
Nem perigo de vida, nem perigo de sonho. Máxima impaciência, para viver e sonhar.
Abril, Porto. 2011. Os Vadi@s