Notas a propósito da Assembleia Popular do Porto



É uma versão cor-de-rosa pensar que o sovietismo, ou o modelo actual chinês, ou que o neoliberalismo quiseram acabar com o Estado. Foquemo-nos no presente. Os grandes interesses da indústria e da economia precisam do Estado. Não há TGV sem o Estado, não há Belo Monte, no Xingu, sem o Estado. Não há concessão a privados de exploração de uma ponte sem antes o Estado a ter pago com o bolso de todos (por vezes, com aquele toque delicioso de o corta-fitas do Estado, meses depois, dirigir a empresa que foi concessionada pelo Estado na pessoa do corta-fitas...). Isto é, não existem grandes investimentos, que protegem sobremaneira os interesses instalados e que beneficiam uma elite económico-financeira, sem o contributo e o dinheiro de todos. Tirem daí o chapéu. Ou será que nos basta o conforto de apanharmos, com um bocado de sorte, esse comboio para entendermos estes empreendimentos como socialmente úteis?
O neoliberalismo precisa do Estado. Sem o Estado era difícil legitimar o roubo, o desvio de fundos públicos, gerado por todos, para fins de interesse oligárquico. É preciso um esquema bem montado (embora, nos últimos tempos, a qualidade de gestão da mentira política e o seu show-off diário metam dó...): uma administração, um braço burocrático, um quadro legal. Sem o Estado – e o seu inerente modelo anti-democrático de concentração de poder – não seria possível o modelo neoliberal impor-se com a eficácia e extensão actuais. O neoliberalismo apenas quer acabar em definitivo (visível desde o eixo Reagan-Thatcher), com aquilo que no Estado era social-democracia: direitos laborais conquistados e assistência social pública, em áreas fundamentais, como a saúde, educação, etc. O neoliberalismo desfaz-se agora do sonho da esquerda de inspiração marxista e/ou social-democrata, que na Europa, nos anos 60, ainda conservava a sua influência e vigor: através do Estado e da regulação da máquina estatal a riqueza pública será distribuída democraticamente, atendendo a determinados valores. O problema para a esquerda não era o modo de produção e a técnica do capitalismo, mas o facto deste modelo “servir unicamente os capitalistas, em lugar de servir a humanidade inteira” (Castoriadis). Este sonho alimentou gerações de lutadores e lutadores contra o “capitalismo”, com factuais conquistas de direitos laborais e sociais. Pela luta na rua, pela perseverança e presença nas instituições do Estado.
Se esta estratégia poderia ter dado “os seus” frutos? Se a esquerda foi capaz de conquistar o supérfluo para perder o essencial? Não é a pergunta mais premente. Só se quisermos ser nostálgicos, ou concorrer ao mercado da fruta exótica. A realidade é incontornável: esse sonho estrebucha. Nem com hormonas – que os laboratórios de bio-investigação fizeram o prodígio de pôr à disposição de camponeses fora d'época... – se faria crescer esta fruta estiolada pela dança do capitalismo. Quem pode, com sensatez e racionalmente, agarrar-se a esta verdade de floricultura para suplantar o capitalismo, a falsa democracia, e a máquina de dominação [do Estado] que está a vista de todos? Essa cultura de esquerda com certeza que persiste, esfalfa-se, mas depois de ter sido integrada e dulcificada pelo capitalismo, pelo parlamentarismo, pelas negociações de direitos na roleta do jogo cujo tabuleiro foi imposto à partida pelo donos do casino, onde está o seu poder transformador? Onde está a sua capacidade de mudar o curso das relações de poder? Onde se institui ela como um contra-poder? Essa cultura de esquerda, repito, com certeza que persiste, mas já não engana ninguém, muito menos os senhores do capital. Essa cultura só se engana a ela própria. Antes, tinha mais razões para se enganar e, sobretudo, ainda punha os cães de guarda do capital em sentido. Acreditava-se revolucionária. Hoje, ainda as bandeiras ondulam ao vento pregando “patriotismo e produção”(!?) e um qualquer magnata elogia o direito à manifestação e indignação das pessoas a quem esmifra couro e cabelo.

A par deste sonho, corria a crença geral – da esquerda combativa aos interesses da direita, da alta finança à oligarquia económica – de que a lógica capitalista (produção e crescimento = progresso e desenvolvimento) não devia ser combatida em si, enquanto modelo de organização económica da vida humana: era preciso ir na corrente e, através de reformas ou revoluções, chegar ao poder central do Estado para alterar as caras, as lideranças, os valores, as práticas. Assim se regularia melhor a riqueza gerada pela lógica capitalista. E que riqueza?
Entretanto, nesta sociedade da abundância do desperdício que é a Europa, da hiper-produção e do hiper-consumo, que argumento nos resta para não concluirmos que essa lógica é um equívoco desastroso e uma mentira pegada? Um equívoco porque espalha a destruição irreversível dos recursos naturais; uma mentira por ser profundamente anti-democrática e socialmente iníqua até à ponta dos cabelos. E odiosa, e triste, por viver da guerra e do conflito económico e social. Por ter tido a competência de gerar o desastre que vem: esgotamento de recursos (petróleo, gás, terra fértil), escassez de outros (água), perda da biodiversidade. Tudo isto, para aprofundar o fosso entre ricos e pobres e deixar como herança às gerações futuras consequências socais imprevisíveis.
Mas os indignados sentem-se como a primeira geração global, aquela que “sabe o que é a globalização...” e, por isso, ao sair do seu umbigo, “we think Global”, então, por onde podemos ainda pegar no capitalismo e no Estado (que lhe garantiu as condições óptimas de progresso), para espalhar as nossas ideias realmente-democratizantes-já? Como se pode ainda começar o movimento de pensar a realidade através deste sistema? Como se pode ainda ceder o pensamento (não falo da acção, mas de ver o mundo e a vida humana) a partir de uma ideia que incorpore esta forma e visão do capitalismo enquanto modelo de organização económica e social do mundo? E a abundância que nos cerca, o que dela foi roubo e desprezo para alimentar as bolsas de pobreza de quarteirões inteiros da cidade do Porto? E no Burkina, que rastro de esperança lhes deixamos por termos cá hiper-shoppings a cada esquina, amontoados de tralha made in China? Deve ser o bálsamo do desenvolvimento sustentável a quem caberá corrigir o caos...

Falta por isso uma cultura que nos liberte, enquanto colectivos. Do medo e da impotência.

E se o argumento para não pensarmos numa maneira de organização colectiva que não passe pelo Estado é a civilização, o seu grau civilizatório (como foi aventado por um assembleário), há que perguntar o que a legitima assim de per si e sem mais: a dimensão temporal? Pobrezinho do Estado, ainda tem muito velinha que bufar, se se quiser comparar com isso das civilizações (e comparar para quê?)... O argumento do progresso? Do desenvolvimento? Ainda há razões para ocultar as regressões causadas na vida social pela dominação estatolátrica? A destruição irreparável do eco-sistema? E a civilização que vem, não nos importa? E a outra, a sul de nós? Será que ainda vamos a tempo de exportar melhor este modelo civilizacional? Será que com uma reforma, como princípio, como ponto de partida, a coisa melhora? Ao fim ao cabo, os gestores é que não cumprem bem. Temos de ir para lá nós...

Quanto ao pensamento “libertário”, se alguém pensa que se fecha o Estado de um dia pra o outro, se é ir lá e fechar a torneira, se é com decretos (ou mesmo com propostas políticas), pensa num idílio, numa espécie de Simplex com petardos de fogo-fátuo. A questão não é fechar o Estado, é acabar com a cultura que ele gerou. Não tanto fechando a porta, mas abrindo outra(s). E aí, estar preparado para a defender. A todo o custo.

Mas, assembleários do Porto e de qualquer outro lugar, ser-vos-à útil não desejar que um grupo de pessoas contribuam para querer pensar convosco num mundo que se pensa, por princípio, como ponto de partida – para interrogar o mundo que há, o mundo que está, para o problematizar, para não lhe ceder à partida argumentos que ele intrinsecamente rejeita –, sem o capitalismo e sem a organização social anti-democrática das sociedades? Chama-se, por acaso, “Estado”, a isso que reuniu e melhor cumpriu as condições que favoreceram o aprofundamento da injustiça humana (e não me venham com estatísticas da UNESCO, com a inteligência terceiro-mundista de me dizerem que se a minha mãe fosse Queniana eu era maratonista, corredor de fundo, recordista de corta-mato...), da destruição ecológica, da destruição de práticas humanas, como a construção da autonomia, a partilha da solidariedade, a decisão colectiva, a força da cooperação, etc.
Mais do que usar argumentos como “o Estado é civilização, algo que mantém a ordem e a conversa entre países” (argumentos em si muito falhos sob o ponto vista dos factos e da razão de pensar a realidade criticamente), seria melhor a sinceridade de reconhecer que sem isto a que se chama Estado dá um certo medo de saber o que nos pode acontecer. E isso, não sendo um argumento, porque é da ordem dos sentimentos, é mais verdadeiro e sincero. Porque apesar do estado das coisas ser uma catástrofe ainda nos restam alguns cartuchos...? (e já não era ontem uma catástrofe? E amanhã, esta perspectiva de regulação dos poderes baseada na autocracia e da democracia representativa, dá-vos esperanças? Acreditam nisso? Ou acham que fazer este niquinho que tem de começar por algum lado, de espalhar esta outra cultura, baseada na democracia directa, ou real, ou libertária, ou como quiserem, onde por base todos participam de igual modo com o mesmo poder, é suficientemente melhor por que mais humana? E medo de quê? De nos perguntarmos outra vez o que é essencial para vivermos? Precisamos do Estado e deste estado de coisas para fazermos essas perguntas? Ou melhor, temos medo de tirar consequências dessas perguntas? Perguntem aos vossos avós se tinham medo de viver sem o Estado, se o queriam para alguma coisa para decidirem e transformarem a sua realidade?
Claro, era o tempo da outra senhora... mas vocês acham que a senhora Merkel precisa da censura e da Pide do Salazar para mandar calar um governo eleito segundo as mesmas regras que a elegeram a ela noutro estado? Os tempos são outros. Ela tem a democracia, tem o supra-sumo da própria democracia: uma representação da democracia representativa. Agora, bom, agora agora, até reconhecemos que a coisa está muito mal, até nos indignamos, se calhar pronto, não há argumento senão a escala da coisa, o Estado é muito grande, não é só nosso, é um problema do resto do mundo, não é local, não nos preocupemos tanto por aí já que a coisa é regra, é norma, se calhar temos um bocado de medo para ver a vida humana de outra forma que não submetida a esta hierarquia complexa de estruturas que nos escapam, se calhar, pensando bem, o meu medo é até uma prova da dimensão atroz desta coisa a que se chama Estado. Se calhar, ou eu muito me engano, mas foi a pensar assim que a sociedade no seu todo e cada indivíduo no seu particular deu o seu contributozinho para que a hegemonia se tornasse hegemónica, para que a escala não pare de sair da escala e da escalada. Dá um desconforto muito grande pensar nisso, o melhor é desistir já! Mas olhem que o Olhanense quando joga com o FCP para a Taça, mesmo quando o Big Bola e as sondagens lhe dizem que vai perder, sobe a campo e vai à luta. É que a nós não nos resta aquela desculpa do treinador pós-massacre que a culpa foi do árbitro. Deixa passar a bola, não é. Pões-te fora de jogo enquanto o diabo esfrega um olho. Ainda te resta a meritocracia, e aqueles 700 mil desempregados hão-de aprender a ter mérito, não é uma questão de organização social, é uma questão de mérito ou demérito, por isso, ficaram de fora por demérito, não se pense aqui que é uma questão do modelo de organização económica das sociedades, aliás a meritocracia não é um conto de fadas desse modelo dominante de organização económica das sociedades, nada disso, nada disso...
Por tudo isto, é ou não legítimo perguntar que atitude adoptar quando a todos a análise da catástrofe nos indigna e, ao mesmo tempo, constatamos que nós próprios vivemos na integração perfeita dos valores desta sociedade?
É ou não legítimo perguntar se toda a organização da civilização moderna (o Estado) forma um mundo onde nada é feito à medida do homem?(Simone Weil) E onde tudo conflui para separá-lo da sua humanidade? Da sua capacidade para agir sobre o seu próprio mundo, as suas necessidades, os seus desejos?
É ou não legítimo perguntarmo-nos porque é que este tempo em que vivemos, (não tanto se tem mais ou menos revolucionários), tem tantos críticos desse mesmo tempo com medo de revoluções? Porque a falta do carácter revolucionário nos indivíduos que compõem a sociedade é um facto objectivo que é explicado pela estrutura em que assenta essa sociedade?

Não importaria esta tónica no Estado (ademais, daqui a nada pareço o Beavis and Butt-Head a fazerem corninhos e abanar o capacete contra o sistema...ugghh, só porque sim). Mas não levar até ao fim um pensamento apenas porque algo se parece com uma verdade estabelecida, não é muita saudável à cachimónia. Ainda assim, concordo, a massa cinzenta não é tudo. O problema é quando essa verdade estabelecida serve para tanta mentira e sofrimento humano. Por isso, esta base autocrática em que o Estado vincula as relações de poder entre
pessoas está demasiado impregnada no nosso imaginário, colonizado pela autoridade e a submissão a um modo de pensar e produzir capitalista.

Se as pessoas não fazem por construir a democracia directa no lugar onde habitam e passam a vida, se não lutaram no lugar de trabalho, na escola onde têm os seus filhos, pela cultura democrática, então, nenhum libertário de facto poderá supor com razoabilidade que se fecharmos o Estado amanhã essa cultura crescerá do dia para noite. Mas se a queremos fazer aqui, não pode ser por teatro.

Eu sei o que é o pior da vida de tantos, aqueles de ontem, aqueles que antes de nós, já não tinham eira nem beira, mas que todavia viviam sem a dose de auto-engano que vos continua a alimentar. A esquerda ampla das boas-intenções da minha geração ofende-me quando parece querer dizer que por a democracia representativa ter sido uma conquista, a partir daí, verdade histórica, fecha o tasco, melhor do que isto não há, foi magia e o resto são cantigas. Ou quando, nesta sociedade da abundância é escandaloso pensar que só uma tempestade de miséria onde a necessidade material bata no fundo possa despertar o ser humano e a sua acção colectiva. Este paradoxo infeliz parece querer realizar-se. Era bom que esta assembleia, como tantas outras, o contrariasse.

Vadio